No final do mês passado, a Obesity Reviews, a mais influente revista científica do mundo focando a obesidade, publicou o artigo “Obesity and Covid-19 in Latin America: a tragedy of two pandemics”. Trata-se do documento oficial da Federação Latino-Americana de Obesidade (FLASO), que revisa diversos aspectos da relação entre o excesso de peso e a infecção pelo novo coronavírus no contexto latino-americano.
Assinado por cientistas de vários países, o trabalho foi coordenado e teve como primeiro autor o endocrinologista brasileiro Bruno Halpern, que está à frente do departamento de relações internacionais da Abeso e é o vice-presidente da FLASO.
Em entrevista ao nosso site, o doutor Bruno Halpern destaca pontos importantes desse documento, dá um panorama da necessidade de políticas públicas e até mesmo da inclusão da obesidade no currículo das faculdades de Medicina. Avesso a frases soltas, fora de contexto, que só geram pânico e fazem o paciente que está acima do peso se sentir culpado, ele ainda esclarece como medidas simples para controlar a obesidade — sim, controlá-la — são capazes de diminuir riscos para a saúde. Inclusive, os da covid-19.
ABESO — O artigo mostra como a pandemia preexistente de obesidade é deixada de lado pelas autoridades, pela saúde pública e até mesmo pelos médicos na América Latina. No entanto, parece que o mesmo “descaso” com a obesidade também é observado, para citar um exemplo, nos Estados Unidos. O que, em sua opinião, os latinos-americanos têm de diferente em relação aos norte-americanos?
Bruno Halpern — Em nenhum momento a gente diz que esse descaso é específico da América Latina. Infelizmente, sabemos que a negligência com a pandemia de obesidade é mundial. O artigo aborda o contexto específico dos latinos-americanos, mas sem dizer que a situação apontada é exclusiva deles. No entanto, refletindo, o que talvez a América Latina tenha como uma característica mais própria — não exclusiva, porém marcante nela — é que, em seus países, nos últimos anos vemos um crescimento acentuado da obesidade nas classes menos favorecidas. Ou seja, embora em prevalência absoluta essa doença também esteja presente nas classes sociais mais altas, ela cresce de forma mais acelerada entre os indivíduos vulneráveis economicamente. E o consumo de alimentos ultraprocessados nessas classes menos favorecidas também é maior. Bom eu dizer: acho que na América Latina existem países nos quais os governos vêm buscando, sim, reduzir alguns aspectos que levam à obesidade. Portanto, não existe no artigo uma crítica especificamente às autoridades latino-americanas no combate à obesidade — embora, no enfrentamento à covid-19, a história seja bem diferente. E não podemos deixar de notar esse contexto que tem a ver com a pobreza e com as desigualdades sociais as quais, por si, já são um fator de risco para a covid-19.
ABESO — A questão do consumo maior de alimentos ultraprocessados pelas classes menos favorecidas seria um aspecto importante, certo?
Bruno Halpern — Exato. O aumento da obesidade na América Latina está muito associado ao consumo maior de comida pronta e ultraprocessada por esses indivíduos, alimentos que são mais ricos em calorias e em sódio e que dão menos saciedade. E eles costumam levar a uma dupla consequência ruim: a pessoa tem obesidade e desnutrição ao mesmo tempo. Ganha peso porque consome muitas calorias, só que a qualidade do que ela ingere é muito baixa e, assim, seu organismo acaba sofrendo com a falta de nutrientes, como vitaminas, sais minerais e proteínas. Provavelmente, essa combinação faz com que as complicações relacionadas com a infecção pelo novo coronavírus, a covid-19, sejam maiores. Lembrando, aqui, que os meses de isolamento social, crise econômica e perda de empregos podem ter provocado um aumento ainda maior do consumo de alimentos desse tipo, o que é bastante preocupante.
ABESO — Com a sua visão, a de quem está em um posto de gávea na FLASO, poderia nos esboçar uma imagem panorâmica de como diversos países latino-americanos enfrentam a obesidade?
Bruno Halpern — Em todos os países, encontramos muitas coisas que são feitas não por governos, mas por grupos de cientistas e pesquisadores, às vezes com o apoio das autoridades locais e, em outras ocasiões, precisando lutar para que suas iniciativas sejam até mesmo reconhecidas por agências regulatórias. É difícil entrar em um campo totalmente político quando falamos de como a América Latina enfrenta a obesidade. No Brasil, por exemplo, temos um Guia Alimentar muito bom, que prioriza o consumo de alimentos in natura, mas que foi criticado duramente pelo governo há pouco tempo. E, talvez, para que ele seja colocado em prática precisariam existir incentivos governamentais. Alguns países — aliás, também alguns estados brasileiros — tentaram contornar certas dificuldades impostas pela quarentena entregando a merenda escolar para as crianças em suas casas, o que foi uma medida interessante, para deixar outro exemplo. Se a gente pensar em ações especificamente voltadas para o combate da obesidade, o México criou taxações para produtos com teores elevados de açúcar e ainda estamos vendo quais serão os resultados reais disso. Já houve uma redução no consumo desses itens, mas aguardamos dados para saber se isso teria impacto na prevalência de obesidade. O Chile, por sua vez, tem um modelo de rotulagem de alimentos muito bom. A nossa Anvisa também, recentemente, aprovou um novo modelo de rotulagem, um processo que a Abeso acompanhou bem de perto. Então, em resumo, aqui e ali existem pequenas mobilizações que, à sua maneira, pressionam os governos a tomarem atitudes mais duras e, quem sabe, amanhã ou depois possam existir subsídios para alimentos mais naturais paralelamente a uma maior taxação de alimentos ultraprocessados.
ABESO — Esse seria, então, um caminho?
Bruno Halpern — Sim, é possível que seja. Na realidade, a única forma de a gente conseguir coisas boas é por meio da ciência, vendo o que está sendo feito em outros países e comparando para analisar o que deu errado e o que aparentemente está funcionando. Claro, devemos nos unir para que o que foi efetivo em um país da América Latina possa ser replicado em outro. Acho que esse é o maior objetivo de existir uma federação latino-americana: oferecer guias para as sociedades. Aliás, este documento sobre a covid-19 que publicamos agora tem esse objetivo, que é o de dar uma orientação baseada em ciência, naquilo que acreditamos ser capaz de funcionar para a América Latina pensando em saúde publica.
ABESO — Reconhecer a obesidade como fator de risco para a covid-19 é importante, está escrito no documento. Poderia nos explicar por quê?
Bruno Halpern — Em primeiro lugar, a ciência não deve ter censura. Todas as relações que apontem para fatores de risco de uma doença precisam ser amplamente divulgadas. Não podemos esconder um fator de risco pela preocupação em sermos mal interpretados. E a obesidade é um fator de risco para a covid-19. Ponto. Não há dúvida disso. Precisamos encarar essa realidade, inclusive para aconselhar as pessoas com excesso de peso da forma correta, tanto em relação ao isolamento, quanto sobre medidas para elas não se infectarem.
ABESO — Como apresentar às pessoas com obesidade essa informação sobre o risco aumentado de complicações da covid-19 sem que ela seja recebida como motivo para pânico?
Bruno Halpern — Na minha opinião, o que a gente não pode é usar esse dado para culpar o indivíduo, como quem diz: “Ah, a obesidade é fator de risco, então se ele tiver a covid-19 e se o quadro se complicar, bem feito. Afinal, ele nunca se cuidou…” Para começo de conversa, deduzir que a pessoa com obesidade nunca se preocupou com a saúde é um absurdo. Estamos falando de uma doença e não de uma escolha de vida. Ninguém está acima do peso porque quer e pode ser bem difícil emagrecer por uma série de razões, incluindo uma base genética. Além disso, não podemos passar a ideia equivocada de que, pelo fato de a obesidade ser um fator de risco, todas as pessoas com essa condição, se pegarem o novo coronavírus, desenvolverão um quadro grave e morrerão.
ABESO — Como conseguir isso?
Bruno Halpern — Colocando essa informação dentro de um contexto. Por exemplo: lembrar que a idade mais avançada oferece um risco muito maior, independentemente de qualquer coisa. Já a obesidade é um fator de risco mais importante nos mais jovens — e mais para os homens. Como está no documento, para evitar o pânico devemosdar recomendações simples, como perder 3% do peso corporal, o que já reduz o risco. Outra: se você já perdeu peso no passado e está mantendo um peso menor, mesmo que ainda esteja com obesidade, você terá riscos menores. Assim como pessoas com diabetes podem ter uma glicemia controlada, podemos dizer que pessoas com obesidade que já perderam peso no passado e que conseguiram manter esse novo peso têm essa condição de saúde mais sob controle. E que fique claro: quando falamos que a pandemia de obesidade foi negligenciada, não foram os pacientes que se negligenciaram, mas os profissionais de saúde e os governos que não deram a devida importância ao seu problema, sem reconhecê-lo como uma doença e deixando a solução completamente nas mãos do indivíduo acima do peso.
ABESO — Acha que as pessoas com obesidade evitam saber sobre esse risco maior de complicações da covid-19?
Bruno Halpern — Não acho. Noto que elas ficaram bastante preocupadas. Existe alguma resistência, sim, em refletir sobre problemas crônicos — como os prejuízos à saúde cardiovascular, por exemplo. Mas quando se trata de uma doença aguda, que qualquer um pode pegar amanhã e manifestar de uma hora para outra, é diferente. Vi muitos pacientes correrem atrás de informação. E, nessas horas, é vital que eles encontrem a orientação correta, como já disse.
ABESO — Tudo isso ajuda bastante durante a pandemia…
Bruno Halpern — Veja, quando alguém me procura com esse intuito, querendo saber o que fazer nessa pandemia, eu respondo que esse sempre foi o motivo do tratamento da sua obesidade: evitar complicações de saúde. Não sabíamos que teríamos uma covid-19 pela frente. Mas, de certa maneira, não era diferente antes. A razão maior de tratar a obesidade é afastar problemas. E, nesse sentido, tudo o que o paciente conquistou no passado graças ao seu tratamento, mesmo que tenha sido uma redução relativamente pequena de peso, está sendo útil agora.
ABESO — Ao seu ver, a pandemia da covid-19 cria uma oportunidade para as pessoas enxergarem como é fundamental olhar também para essa outra pandemia, a da obesidade?
Bruno Halpern — Sim, e a ideia do documento da FLASO é um pouco esta, ou seja, levantar na literatura científica as diversas estratégias para combater a obesidade na sáude pública e, no fundo, essas estratégias vão muito além do momento da covid em si. Discutimos vários aspectos, como a taxação de bebidas açucaradas, a valorização de guias alimentares que não sugerem o consumo de ultraprocessados e, claro, o acesso ao tratamento da obesidade. Aqui no Brasil, por exemplo, temos a cirurgia bariátrica aprovada no SUS. Mas na prática é uma parcela pequena de pacientes com essa indicação que consegue ser operada e o SUS não oferece acompanhamento pós-cirúrgico. Portanto, no final temos oferta que é incompleta. Assim como o SUS não oferece opções de tratamentos que deveriam vir antes da cirurgia. Teoricamente, para receber a indicação para a bariátrica o paciente precisaria ter passado por dois anos de tratamento clínico. Mas sabemos que não existe esse tratamento clínico na rede pública, tanto do ponto de vista de medicações como pensando no acompanhamento multidisciplinar. Então, voltando ao documento, relatamos que, na França, aconteceu um movimento para melhorar os serviços de atendimento de pessoas com obesidade na pandemia. O Reino Unido fez algo nessa linha, mas mais voltado para o indivíduo e foi criticado por ser algo como “cuide de sua saúde e o problema estará resolvido”. Não que a ação individual não seja importante, mas não pode ser vista como uma estratégia pura e simples. Resolver o problema da obesidade exige um esforço muito mais amplo do que o da esfera individual.
ABESO — No documento é destacada a necessidade de as faculdades médicas incluírem a disciplina de obesidade em seus currículos, algo que já foi sugerido há cerca de cinco anos. Qual seria o empecilho?
Bruno Halpern — Sim, tem razão: isso já foi sugerido no passado. Mas as sociedades que levaram essa proposta não têm poder de lei. Precisamos levantar sempre esse ponto para que essa discussão se torne mais natural. Nada vai acontecer de um dia para o outro, mas essa reflexão vai sendo feita aos poucos. Talvez um dos empecilhos é que, com tanta faculdade de Medicina no país, a gente nem tenha pessoas com formação suficiente em obesidade para ensinar essa matéria da forma correta. Desse modo, nos seis anos de uma faculdade de Medicina não se aprende praticamente nada sobre uma doença que está presente em quase 20% da população brasileira.
ABESO — A falta desse conhecimento atrapalha o atendimento?
Bruno Halpern — Demais. O estigma é forte e o paciente não é visto como um todo. Pessoas com obesidade têm um tratamento pior de qualquer condição e têm menos diagnóstico de doenças porque muitos médicos acham que todos os sintomas relatados por eles simplesmente têm a ver com o peso e, assim, desconsideram o que ouvem na consulta. Recomendam que eles emagreçam e acabou. Um exemplo muito claro é que existem poucos diagnósticos de insuficiência cardíaca em pessoas com obesidade. Se elas chegam dizendo que estão cansadas, muitos médicos afirmam que a razão é a sua falta de condicionamento físico e nem sequer investigam o caso. Toda dor, por sua vez, é tida como ortopédica, causada pela sobrecarga. Ninguém cogita outras causas. Lamentavelmente, não faltam situações assim.
ABESO — E nas residências médicas?
Bruno Halpern — Claro que varia muito de faculdade para faculdade, mas em geral até mesmo olhando para as residências em Endocrinologia são poucas as que têm grupos específicos de estudos da obesidade. E atenção: isso não acontece apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Em congressos internacionais, notamos que as mesmas demandas que existem aqui aparecem em outros países. Talvez a maioria dos médicos saiba calcular o IMC, mas óbvio que isso é muito pouco.
ABESO —Por ser uma doença que precisa de tratamento multidisciplinar, faculdades como as de Nutrição ou de Educação Física também não deveriam abordar a obesidade em seu currículo?
Bruno Halpern — Sem dúvida alguma. O próprio documento deixa claro que esse ponto vale para profissionais de saúde das mais diversas áreas. Essa necessidade vai muito além da Medicina.
ABESO —O enfrentamento de duas pandemias ao mesmo tempo multiplica os riscos à saúde da população. Por outro lado, existiriam oportunidades nesse encontro? Quais seriam?
Bruno Halpern — Difícil falar em oportunidade diante da tragédia que a gente está vivendo. Mas, se for para tirar algo de positivo, seria exatamente essa possibilidade de a sociedade perceber a obesidade como doença depois que essa relação com a covid-19 se tornou mais clara. Não é algo natural. Precisamos ter a preocupação constante de fazer a nossa mensagem chegar para que a obesidade passe a ser vista com outros olhos. E pode até ser que no futuro, quando a pandemia da infecção pelo novo coronavírus acabar, as pessoas voltem a se esquecer da outra pandemia. Por isso, ainda precisamos bater muito nessa tecla. Incansavelmente, eu diria.