Minutos depois de conceder entrevista para a campanha #vamosfalarsobreobesidade — realizada ao lado da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologista e Metabologia) e da World Obesity Federation —, o endocrinologista pernambucano Ruy Lyra já teria outro compromisso importante de trabalho. Mas isso não abalou seu jeito calmo de conversar sobre um tema que lhe é caro: o diabetes. E, no caso, discorrer sobre os elos dessa doença com o excesso de peso
Presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes, ele é também pesquisador e professor de Endocrinologia da Universidade Federal de Pernambuco, com diversos artigos publicados, livros e conferências no currículo.
À jornalista Lúcia Helena de Oliveira, confessou nesse bate-papo: “Uma coisa que sempre coloco para os alunos é que me sinto incomodado por fazer uma Medicina de manhã, no serviço público, e outra completamente diferente à tarde, na saúde privada”. Antecipa, assim, que uma das grandes batalhas de sua gestão será pela equidade no acesso, sabendo bem o tamanho desse desafio.
O sr. diria que a escalada da obesidade no Brasil e no mundo tem mudado a “cara” do diabetes?
RUY LYRA — Vamos começar falando sobre o diabetes tipo 2, no qual a relação é fortíssima: de 85% a 90% dos adultos com esse diagnóstico têm sobrepeso ou obesidade. Evidentemente que nem toda pessoa acima do peso e até mesmo com obesidade irá desenvolver o diabetes. Para isso, é necessário um background genético. Mas quem tem o histórico familiar da doença e associa essa herança a ganho de peso e sedentarismo aumenta de forma importante o risco de ela aparecer. Agora, você me pergunta o que mudou… Geralmente, o diabetes tipo 2 se inicia a partir dos 35, 40 anos de idade. Hoje, porém, a gente se depara com uma situação que não existia: o diabetes tipo 2 na infância e na adolescência. E a razão desse fenômeno é que, cada vez mais cedo, vemos crianças com obesidade. Claro que o diabetes tipo 2 nessa faixa etária é muito menos prevalente se você compara com os números em adultos. Mas é algo que nunca vimos antes e que acende um sinal de alerta que não pode ser ignorado.
E o diabetes tipo 1?
RUY LYRA — Aí, se me permite, gostaria de voltar um pouquinho no tempo. O diabetes tipo 1 é causado pela falência das células beta do pâncreas, que produzem insulina. No passado, essa forma de diabetes não tinha, digamos, um tratamento padrão ouro. Sem um controle adequado, o paciente desenvolvia complicações crônicas e morria precocemente. Esse era o curso do diabetes tipo 1 quando não havia uma grande oferta de alimentos diet e light, nem uma disponibilização mais ampla de insumos, muito menos apresentações de insulina mais adequadas. Mas tudo isso melhorou bastante nos últimos tempos e não se compara o controle glicêmico de um indivíduo com diabetes tipo 1 hoje com o que existia antes. Ele deixou de morrer de complicações. Mas eis que, então, veio um outro problema: vivendo mais, esse indivíduo começou a ganhar peso. E o sobrepeso e a obesidade nesse paciente leva à mesma história do diabetes tipo 2: surge a resistência à insulina.
A resistência insulínica seria o elo entre obesidade e diabetes tipo 1 ou tipo 2?
RUY LYRA — Sem dúvida, ela está sempre por trás. A gordura acumulada, principalmente a visceral, solta ácidos graxos livres na circulação. Essa molécula irá “contaminar”, por assim dizer, diversos tecidos — fígado, coração, musculatura lisa, rins e, entre muitos outros, o pâncreas. Ocorre, então, uma lipotoxicidade, digo, uma intoxicação por essa gordura fora de lugar, que acarreta ainda em disfunção endotelial, isto é, da parede interna dos vasos, além de inflamação e uma cascata de eventos que justificam por que passamos a observar um aumento de risco cardiovascular em pessoas com diabetes tipo 1.
Voltando ao diabetes tipo 2, o manejo seria mais difícil nos pacientes com obesidade?
RUY LYRA — Precisamos dividir os pacientes com diabetes tipo 2 em dois grupos — os que não usam insulina e os que precisam repor esse hormônio por causa de uma falência pancreática secundária. Ou seja, neles pâncreas já não responde adequadamente ao tratamento com outros fármacos. Atualmente, para aqueles pacientes que não usam insulina temos uma gama considerável de medicamentos orais ou até mesmo injetáveis, como os agonistas do receptor de GLP1. É bem diferente de quando me formei, há 35 anos. Naquela época, só tínhamos praticamente sulfonilureia, insulina e metformina. A sulfonilureia, no caso, ao promover a liberação de insulina pelo pâncreas, tinha o problema de levar à hipoglicemia e ao ganho de peso. Porque a insulina é lipogênica. Quer dizer, ela forma gordura. E veja que incrível: hoje temos vários medicamentos que promovem o controle da glicemia, mas sem induzir a hipoglicemia e com efeito neutro sobre a balança ou até de perda de peso ponderal. Aí entram os análogos do receptor do GLP1, os inibidores da DPP-4 e os inibidores de SGLT2.
E o que acontece quando o paciente vai para a insulinoterapia?
RUY LYRA — Bem, aí o desafio para manejar o tratamento continua quase mesmo. Porque normalmente, como a aplicação é subcutânea, precisamos fazer doses além da necessidade do organismo. Se o ajuste não é perfeito, o que irá acontecer? Ganho de peso. Algo que, para uma pessoa que já está com sobrepeso ou obesidade, pode ser desastroso. O endocrinologista precisa encontrar a receita de bolo, acertar a mão para fazer esse indivíduo ter um bom controle glicêmico sem engordar ainda mais. E essa dinâmica é muito difícil.
Como o senhor vê a chegada dos novos medicamentos contra a obesidade?
RUY LYRA — Estamos em um momento pródigo da ciência, tornando possível fazer o controle glicêmico e de peso ao mesmo tempo. Sem contar outros benefícios. Recentemente, o estudo FLOW demonstrou que a semaglutida em pacientes com diabetes tipo 2, além de levar a uma perda de peso extraordinária, é capaz de proteger os rins. É indubitavelmente um grande avanço. E outros virão. Já temos a tirzepatida, um duplo agonista com resultados fantásticos, com perdas em torno de 20% do peso inicial. No Brasil, ela foi aprovada, mas ainda não chegou. E uma das razões é que a produção não está dando conta de atender a demanda ao redor do mundo, porque é de fato outro enorme avanço. O caminho também é promissor para medicamentos triplo agonistas que estão em estudos e, acredite, há até um quádruplo agonista, embora em uma fase bem mais inicial de pesquisa.
É maravilho pensar sobre todos esses avanços. Mas, no país, na rede pública há realidade é outra. Muitas vezes os pacientes não conseguem nem sequer fitas para medir a glicose…
RUY LYRA — Uma coisa que sempre coloco para os alunos é que me sinto incomodado por fazer uma Medicina de manhã, no serviço público, e outra completamente diferente à tarde, na saúde privada. Nós, médicos, não somos treinados, ao longo de seis, oito, dez anos ou mais de formação, para distingir o paciente conforme sua classe econômica. Infelizmente, temos de enfrentar essa realidade e tentar contemporizar. Ao assumir a presidência da SBD, um dos meus maiores objetivos é lutar para reduzir essa enorme diferença entre o paciente com diabetes — e, frequentemente, com obesidade também — que depende do SUS e o paciente atendido no sistema privado. Esforço não irá faltar!
Uma dificuldade em comum na saúde privada e na pública é engajar o paciente para que haja uma boa adesão ao tratamento, concorda?
RUY LYRA — Em toda e qualquer doença crônica — como a obesidade e o diabetes —, a adesão ao tratamento é o ponto frágil. Lembro-se de uma pesquisa realizada no Exterior em que a pesquisadora procurou descobrir qual seria o maior responsável pela falta de adesão, dividindo os pacientes em três braços: a culpa é do próprio paciente, que não segue as orientações; a culpa do serviço de saúde que não oferece a estrutura ideal para um bom atendimento ou, finalmente, a culpa seria do médico. O resultado foi que, em mais ou menos 25% dos casos, a falta de adesão tinha mais a ver com o paciente. Em outros 25%, com o serviço de saúde. No entanto, em cerca de metade dos casos, o grande culpado era o médico. Penso que, no Brasil, a parcela de responsabilidade do serviço de saúde seja um pouco maior. Mas duvido que os médicos não sejam os maiores responsáveis pela falta de adesão aqui também.
Por que razão?
RUY LYRA — Talvez o treinamento do profissional de Medicina não seja adequado desde a faculdade, onde ele deveria aprender que o tratamento de uma doença crônica presume a necessidade de conscientizar e envolver o paciente. Mas essa parte, apesar de complicada, é até mais fácil de resolver que outra: infelizmente, estamos na era das consultas a toque de caixa e não estou falando apenas do SUS. Ora, engajar o paciente para a adesão demanda tempo para explicar sua condição, orientar sobre alimentação e atividade física, mostrar a importância sua parte em mudanças no estilo de vida e em se medicar com disciplina. Mas o mundo nos joga para outro lado. Rapidamente, prescrevemos remédios e mandamos o indivíduo embora porque, na sala de espera, alguém já está reclamando do atraso com a secretária. No entanto, apesar do paciente ter a sua parte nessa história — a culpa pela falta de adesão é de todos os envolvidos —, acho que a Medicina precisa lembrar do seu comprometimento de oferecer a melhor perspectiva de tratamento para cada um. Como? Precisamos encontrar a resposta nesse mundo corrido. *