Na semana passada, a influenciadora digital Dani Noce, que soma quase 3 milhões de inscritos em seu canal no YouTube, agitou as redes sociais ao declarar que “açúcar com gordura é basicamente cocaína”. E mais: que essa descoberta teria sido o principal motivo para ela parar de vez de confeitar.
“A comida é socialmente aceita, enquanto o cigarro e as drogas não são aceitos, então é muito mais difícil você parar”, disse ainda Dani Noce, insistindo na comparação dos doces com substâncias tóxicas. “É muito difícil também porque você precisa se alimentar. Tem que comer duas, três vezes ao dia. E fazer a escolha certa é complicado”, acrescentou.
Para evitar a “escolha errada”, a influenciadora contou que tomava café ou suco de limão, porque — segundo ela — tudo o que é ácido ou amargo cortaria a vontade de doce. Atenção: isso não tem o menor embasamento científico. Aliás, esse é o ponto.
A Abeso é absolutamente contra a postura de simplesmente criticar pessoas ou expor alguém — a influenciadora ou qualquer um. Somos contra os “cancelamentos” tão em voga e partimos do princípio de que as intenções podem ser sempre as melhores — no caso, tentar ajudar quem sofre de um transtorno alimentar, como a ex-confeiteira diz ter.
No entanto, há uma série de conceitos de saúde equivocados nesse relato que, uma vez espalhados nas redes, poderiam se tornar bastante prejudiciais. Assim, queremos aproveitar a oportunidade para esclarecê-los. Para isso, levantamos cinco perguntas que essa discussão suscitou.
Dá para comparar o açúcar a drogas?
Quem responde é a endocrinologista Cintia Cercato, que acaba de assumir a presidência da Abeso: “O açúcar não é cocaína! É verdade que o cérebro pode responder a essa substância, assim como à gordura, de forma semelhante a drogas, no sentido de ativar seus centros de prazer e recompensa”, diz a médica. “Mas não dá para comparar o que muitos chamam de ‘vício em comida’ com o vício em drogas. Até porque nenhum alimento é capaz de gerar uma crise de abstinência, por exemplo. Sem contar que o açúcar pode fazer parte de uma vida equilibrada, em que se come de tudo de maneira saudável. E o mesmo não dá para dizer da cocaína.” Conclusão: não perpetue a comparação de qualquer alimento com drogas.
O que é transtorno de compulsão alimentar?
“O transtorno da compulsão alimentar (TCA) é uma entidade clínica da psiquiatria, bem definida e muito estudada”, explica o psiquiatra Adriano Segal, do nosso departamento de psiquiatria e transtornos alimentares.”Ele é caracterizado pela ingestão descontrolada de quantidades grandes de alimentos, nos chamados episódios de compulsão alimentar, conhecidos pela sigla ECA ou binge eating, em inglês. Esses episódios são repetitivos e sem comportamentos compensatórios inadequados”, define.
Qual seria a relação entre TCA, carboidratos simples e vício em comida?
Segundo Adriano Segal, habitualmente os alimentos presentes nos episódios de compulsão alimentar são, de fato, muito palatáveis ou ultraprocessados. “Eles costumam ter teores elevados de sal, gorduras e açúcares”, observa o médico. “Acabam sendo consumidos por uma procura ativa de quem os ingere. É quando a pessoa compra vários pacotes de uma guloseima qualquer por causa de uma promoção ou por preços convidativos”, exemplifica.
De acordo com o psiquiatra, vários pacientes relatam que não conseguem se segurar e têm que sair de casa, às vezes no meio da noite, só para comprar algum desses alimentos, ao menos no início do quadro. “Depois, passam a ter estoques maiores, para evitar esse tipo contratempo”, descreve.
Podemos falar em vício por doces?
“Algumas das vias neurológicas envolvidas na obtenção de prazer são comuns aos alimentos, ao sexo e aos efeitos de algumas drogas. Alimentos ricos em açúcar, sal e gordura ativam essas vias”, reconhece Adriano Segal. “E foi a partir desse aspecto que alguns cientistas passaram a acreditar que o conceito de ‘vício em comida’ fosse adequado. O tema começou então a ser pesquisado até os dias de hoje.” No entanto, há algumas questões que fazem com que esse conceito não seja aceito pela totalidade — “aliás,nem mesmo pela maioria da comunidade científica”, pontua o médico. O assunto sempre gera polêmicas nas publicações acadêmicas e discussões acaloradas em congressos.
“Não cabe aqui discutir essas questões”, pondera o psiquiatra. “Mas, se você refletir um pouco sobre a ideia de que alguém possa desenvolver uma adição a uma condição indispensável à sobrevida individual e da espécie, irá ter um vislumbre: não dá para você criar uma dependência de ar; você já nasce com ela”, diz Adriano Segal. “De modo similar, ingerir comidas com alto teor de açúcar, sal e gordura teve um papel evolutivo importante no passado, que hoje não serve mais. Mas nossa carga genética demora muitas gerações para mudar. Digamos que parar de gostar desses alimentos exige um alto esforço individual e parar de consumi-los tem um custo emocional e até financeiro maior.” Daí a assumir que essa dificuldade é necessariamente um vício pode não ser tão simples.
Mas o que dizem por aí sobre o açúcar ser um vilão, especialmente para quem tem TCA?
Para Adriano Segal, “todos têm o direito a achar o que quiserem sobre qualquer tema. Mas, se você desejar uma opinião embasada sobre o conserto do seu carro e não for especializado na área, sugiro que procure seu mecânico de confiança, ao menos até você acabar de fazer o seu curso de mecânica”, dispara. “Do mesmo modo, se você deseja consertar alguma coisa de sua saúde, procure por um bom profissional da área e que seja de confiança.” Em resumo, não acredite no que escutar de influenciadores sobre problemas graves, como é uma compulsão alimentar. Procure um profissional de saúde.
Há muitas pessoas por aí que podem ser bem intencionadas, mas pouco embasadas, dando conselhos que têm cara de bons. “Só que eles não apenas não são verdades aceitas pela ciência, como podem fazer mal”, avisa o psiquiatra. “E, claro, há também as notícias mal intencionadas, mas elas não são o nosso foco nesse caso”, diz o médico.
A nutricionista Mônica Beyruti pede ainda cautela quando ouvir essa história de que o açúcar estaria sempre associado à compulsão alimentar. “É tudo mais complexo. O fato de você comer muito chocolate porque gosta ou repetir determinado doce não é suficiente para definir o TCA”, lembra. “Além disso, a pessoa pode desenvolver uma compulsão de fato por alimentos que não são necessariamente doces.” Segundo ela, o açúcar é gostoso, pode trazer prazer e bem-estar, longe de ser um vício. “E é bom ressaltar que pacientes portadores de obesidade podem consumi-lo, desde que com moderação. O que deve ser evitado, sempre, são os excessos.”