31 de março de 2024
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FABÍOLA SUANO DE SOUZA: “Sempre é hora de intervir para prevenir a obesidade infantil”

Aos 17 anos, quando entrou na Faculdade de Medicina do ABC, em São Paulo, tudo parecia novidade para Fabíola Suano de Souza, que hoje é a presidente do Departamento de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria.

A curiosidade a levou a se envolver com o universo das crianças nas ligas de Pediatria, participando de campanhas de vacinação. Mesmo assim, durante curso, ela sempre negou que se tornaria pediatra. “Nada disso!”, rebatia ligeiro quando alguém falava no assunto. “Eu gosto de ajudar com essa história de vacinas, mas quero fazer Nefrologia de adultos”, era o que vivia repetindo.

No entanto, no sexto ano, naquele famoso momento de fazer o “x” em uma das opções da residência, parou e pensou: o que gostaria de fazer pelo resto de sua vida?  “E então vieram à memória, como em um filme, as imagens das campanhas de vacinação”, conta. “Naquela época, a família inteira vinha se vacinar. A criança vestia uma roupa mais arrumadinha. Era um verdadeiro evento!”.

A Pediatria foi realmente a escolha mais acertada. Na própria residência, as pesquisas sobre nutrição e metabolismo a deixaram encantada de vez. Por isso, depois da Pediatria, acabou fazendo Nutrologia.

Na visão da médica, os distúrbios nutricionais — desnutrição, anemia, carência de nutrientes e obesidade — partem de um mesmo ponto.  “Eles surgem porque algo vai mal na alimentação da população. Só que, atenção, não estamos falando de escolhas”, afirma. “Esses distúrbios refletem que a sociedade não está bem. E o resultado desse padecimento da sociedade é sempre mais sentido pela criança.”

Esse é o tom da conversa que ela teve com a jornalista Lúcia Helena de Oliveira, como parte da campanha #vamosfalarsobreobesidade, realizada pela Abeso, em parceria com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a World Obesity Federation.

Mais de metade da população brasileira tem sobrepeso ou obesidade. Como fica o desafio dos pediatras sabendo que, sendo filhos de pais com excesso de peso, muitos bebês já nascem carregando uma tendência a engordar demais? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — O que chamamos de epigenética justifica essa tendência, podendo, sim, aumentar o risco de obesidade e de outras doenças. Mas eu gosto de lembrar que, ao mesmo tempo,  a epigenética abre uma janela de oportunidade para a intervenção e a redução desses mesmos riscos. No passado, eu sempre encontrava textos impregnados de um certo determinismo, apontando que a criança filha de uma mulher com obesidade já teria herdado a tendência a ter obesidade também e fim de discussão. Porém, quanto mais os estudos avançam, mais temos a certeza de que podemos mudar trajetórias —  para o bem e para o mal. E isso antes mesmo de o casal gerar um filho.

A prevenção da obesidade infantil começaria antes da concepção, então? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Isso mesmo. Pense que, com uma população em que quase seis em cada dez pessoas estão acima do peso, a probabilidade de um casal se encontrar e, no momento da fecundação, um dos dois parceiros — ou, se duvidar, ambos — não estar em uma situação metabólica ideal é enorme. A mulher, no caso, é quem gesta a criança. E, de fato, durante os nove meses de espera, a sua saúde física e mental estará intimamente ligada com a de um bebê em seu ventre, que está formando todos os seus órgãos e sistemas. Há literalmente um cordão umbilical ligando os dois. Mas o pai participa desse enredo da epigenética também: homens com obesidade terão marcadores genéticos dessa doença no espermatozoide. 

Onde estaria a janela de oportunidade? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Vamos pensar que o pai está com sobrepeso na hora da fundação e que a mãe tem obesidade: será que o risco da criança de acumular gordura já está assim tão determinado? Não! O bonito dessa história é que, apesar de a mãe já ter iniciado a gestação com obesidade, se ela ganhar peso conforme a recomendação durante a gravidez, irá reduzir, sim, o risco de o seu nenê ter obesidade no futuro. É o que mostram os estudos. Os órgãos e os sistemas em formação no início da vida são muito mais sensíveis, dando ao ambiente tanto o potencial de causar doenças quanto de evitá-las. Sempre é tempo de intervir, do momento em que se planeja uma gravidez até a adolescência do filho, criando uma curva de proteção que será importante não só para ele, mas para os filhos dele.  

Ou seja, vai além da prole? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Sim. Quando a mulher está grávida de uma menina, por exemplo, os óvulos da filha já estão se formando. Logo, a maneira como essa gestante se cuida ou deixa de se cuidar irá interferir na saúde de seus netos. E, aí, pode entrar o pediatria. Ele não deve deixar esse assunto de lado só porque a família já chegou com um bebezinho recém-nascido para se consultar. Não será tarde demais! As orientações que ele passar comentando a gestação desse primeiro filho servirão para uma uma segunda gravidez mais adiante. Aquela mulher poderá controlar sua obesidade antes mesmo de engravidar do próximo bebê. Toda oportunidade de educar sobre a prevenção da obesidade deve ser aproveitada. Nunca é tarde, quando temos uma doença tão prevalente. Nenhum esforço pode ser desperdiçado.

O ideal não seria uma consulta de pré-natal com o pediatra também? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Sim. Essa consulta deveria acontecer entre a 34.º a 35.º semana de gestação, de acordo com a literatura. Se é a primeira vez que aquela família espera um bebê, o pediatra tem a chance de já dar orientações básicas nesse encontro e iniciar o vínculo com a mulher, com o seu parceiro ou com sua parceira, não importa o modelo de família.

Parece incrível. Mas, na rede pública, isso é mesmo possível? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Não tem sido. Eu diria que, hoje, só tem garantido o pediatra quem possui acesso a uma Medicina suplementar. No sistema de saúde como um todo, infelizmente a nossa especialidade perdeu muito espaço.  A prevenção da obesidade também termina prejudicada com isso. Explico. A base ou o alicerce da Pediatria é a puericultura, o acompanhamento da criança, observando o seu crescimento, o seu desenvolvimento e as doenças mais prevalentes, sempre enfatizando a prevenção. O pediatra é treinado na residência para esse acompanhamento. E, ao meu ver, médicos de outras especialidades não conseguirão fazê-lo da melhor maneira possível e nem sempre irão comunicar de maneira empática com a família. Além do mais, o pediatra é resolutivo: sabe trazer as respostas de que precisa até mesmo diante de um paciente que ainda não fala. Uma situação que deixaria outros especialistas perdidos, só encontrando a saída de encaminhar o caso. Digo tudo  isso porque a Unidade Básica de Saúde (UBS), que antes nos chamávamos carinhosamente de “postinho”, perdeu o pediatra que acompanhava as crianças da região. O que encontramos nas UBS é o médico de família — que, muitas vezes, nem têm essa formação, porque o número de profissionais dessa especialidade ainda é pequeno no país, diferentemente do que vemos no Reino Unido e no Canadá, por exemplo. O médico de família pode ser excelente. Mas não tem um conhecimento tão aprofundado de Pediatria. E assim algumas janelas de oportunidade podem ser perdidas, inclusive no que diz respeito a prevenir o ganho exagerado de peso.

A amamentação seria uma dessas janelas de oportunidade? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — É um ótimo exemplo. A amamentação protege a criança de infecções respiratórias, doenças diarreicas, alergias e até mesmo da obesidade. Além de promover o melhor desenvolvimento neuromotor possível para aquela criança. O que quero dizer: quando você sobrepõe o potencial genético de um bebê com a amamentação, sua trajetória de saúde alcança o melhor que ela poderia ser.

O que se sabe sobre amamentação e prevenção da obesidade? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Mamar no peito reduz em 20% a 24% o risco de um indivíduo ter sobrepeso e obesidade não apenas na infância, mas ao longo de toda a vida. Isso é significativo, ainda mais se pensamos no ambiente obesogênico em que a criança irá fatalmente viver. Se a mãe tem obesidade e, ainda por cima, se ela ganhou muito peso na gravidez, amamentar irá proteger o seu bebê. Se a mãe é muito magra e ganhou pouco peso na gestação — esse outro extremo também aumenta o risco de obesidade futura —, amamentar protegeria igualmente o seu bebê. É uma informação que os pediatras procuram passar adiante.

Como o aleitamento materno faria essa proeza?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Primeiro, a composição do leite materno muda o tempo todo. Existe uma espécie de conversa entre mãe e filho, quando este coloca a boquinha na região da aréola mamária, que é extremamente inervada. É como se essas terminações nervosas da mãe captassem sinais da criança e enviassem mensagens ao sistema nervoso. Isso é capaz de fazer o leite se alterar ao longo do período de lactação, às vezes de mamada para mamada e, na certa, de mãe para mãe. No começo, quando o bebê cresce mais, o leite tem mais proteínas e calorias. Depois, quando ele não precisa crescer tanto, o leite materno deixa de ser tão calórico. Portanto, é um alimento dinâmico, que fornece energia sob medida. Além disso, ele muda de sabor ao longo da lactação, conforme essa mudança de composição e a alimentação da mãe. Claro, não é porque a mulher comeu cenoura que seu leite terá o gosto do legume. Mas receberá alguns de seus sais minerais e carotenoides, por exemplo. Aliás, o leite materno é capaz de mudar até de tom!  No final, essa alternância de sabores favorecerá a experimentação de novos alimentos adiante. A chance de ter uma dieta diversificada é maior na criança amamentada no peito. Já a criança que se alimenta com fórmula sente, dia após dia, o mesmo gosto e poderá ter maior resistência a provar frutas, legumes, verduras e outros alimentos mais tarde. Isso já foi mais do que comprovado.

É verdade aquela história de que a gente gosta de tudo o que é doce porque o leite materno seria adocicado?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — É mito. O leite materno não é doce, chega a ser quase salgado. Não tem aquele sabor do que leva o sal de cozinha. É diferente, mas decididamente não é doce. Possui, isso sim, uma quantidade razoável de glutamato, que seria o umami, um quinto sabor. Agora, é verdade a criança já nasce preferindo um sabor mais adocicado. Mas não é o do açúcar de cana, por exemplo  — é o doce sutil da lactose do leite.

O leite materno também ajudaria a promover saciedade? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Mais do que isso, é como se ele treinasse o sistema nervoso que está amadurecendo a perceber os sinais de quando o organismo está saciado. Porque o leite materno contém substâncias como adipocinas e leptina. Esta, em especial, age no centro de fome e saciedade do cérebro. Ao mamar no peito, o bebê está recebendo doses de leptina. Ao alcançar o sistema nervoso central, essa molécula avisará que é hora de parar. É um verdadeiro treinamento de sentir fome e, na sequência, saciedade. Sem contar que esse leite tem microRNAs, um dos fatores epigenéticos mais investigados. Eles são como pedacinhos de RNA que farão parte da transcrição de seus genes, interferindo em sua expressão. Desse modo, eventualmente podem inibir, mesmo que em parte, alguns  dos inúmeros genes ligados à obesidade. 

As mães que amamentam, sem saber de tudo isso, muitas vezes se desesperam, achando que o bebê não se alimentou o suficiente, não é verdade?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Eu me pergunto: será que as pessoas sabem quando um bebê saudável, mamando no peito da mãe, já está satisfeito? Simples: quando ele larga esse peito. Quando ele faz isso, a mulher não sabe se ele mamou 100 mililitros, se mamou muito menos ou muito mais que isso. E esse desconhecimento é ótimo para ele! Já aquela mãe que prepara 180 mililitros de fórmula, leite de vaca ou outro leite na mamadeira até terá a informação do volume que foi mamado. E, se o filho esvaziar apenas a metade da mamadeira, ela ficará preocupada, insistindo para que ele dê mais alguns goles. A questão é que o cérebro desse bebê não estará bem desenvolvido e, portanto, se ela  colocar a mamadeira em sua boca de novo — além de a refeição ser mais rápida, porque ele não precisa fazer tanta força para sugar o alimento —, ela voltará a se alimentar, mesmo já estando saciado. Dia após dia, poderá mamar o dobro do que, na verdade, seu organismo estava pedindo. Qual o resultado disso? Acho que todos podem presumir uma possibilidade.

Para a prevenção da obesidade, qual seria o tempo ideal de amamentação?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — A recomendação é que a criança continue sendo amamentada até os 2 anos de idade para se desenvolver bem e prevenir  diversos problemas, não só da obesidade. No entanto, as mulheres precisam saber, para não se sentirem desestimuladas, que, se elas conseguem amamentar por um ano e meio, isso já é melhor do que amamentar por apenas um ano. E, se o bebê mamou por um ano, já foi melhor do que se ele tivesse mamado somente por seis ou oito meses.  Seis meses, por sua vez, é um tempo melhor do que quatro. E quem amamentou por apenas dois, três ou quatro meses fez algo que é melhor do que nada. Esse é um conceito que carece de ser disseminado. Afinal, o pediatria fala para pessoas com as mais diferentes histórias de vida. E, não raro, a mãe que não conseguiu amamentar seu filho por um bom período, seja por qualquer motivo, se sente excluída. Devemos nos lembrar que existem algumas mães que amamentarão com muita facilidade. E outras não conseguirão ir tão bem. A maior parte, no meio do caminho, amamentará apenas se tiver apoio, orientação e proteção. Cabe ao pediatra ajudar nisso.

A transição alimentar, quando o bebê deixa de se alimentar exclusivamente no peito, seria mais um momento crítico?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Sem dúvida.  Acho graça que toda a família tem um vídeo no celular com a primeira refeição da criança. Antes, eram fotogradias. Desde sempre, esse é um momento considerado especial. E, pela minha experiência, nessa hora todo mundo quer dar o que existe de melhor para o bebê, até mesmo quem erra ou, vá lá, não acerta tanto.  Sejamos justos: as pessoas têm clareza do que seria o aleitamento materno exclusivo. É uma parte mais fácil de ser compreendida. Agora, quando estamos falando sobre o que colocar nos primeiros pratinhos do bebê, essa clareza já não existe. A refeição da criança poderá variar de cultura para cultura, de família para família, de nível de renda para nível renda. E, atenção, devemos incluir aspectos afetivos, presentes especialmente nas gerações um pouco mais velhas.

Como assim?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Até um tempo atrás, vivíamos uma fase em que comprar guloseimas era sinal de status. Quando os meus pais me deixavam escolher um pacote de bolacha recheada no supermercado, aquele era um momento carregado de afetividade. Talvez na cabeça deles passasse algo como ‘nós conseguimos dar isso para ela’. Quem cresceu assim, ao ter seu próprio filho, experimentará alguma  dificuldade para desconstruir esse pensamento. Porque a sociedade criou a ideia de que o alimentos ultraprocessados seriam sinônimo de carinho e cuidado. E que tudo bem oferecê-los aos filhos porque era o que as classes mais altas compravam. Falo disso porque, quando o profissional de saúde orienta a transição alimentar, ele deve abrir seus ouvidos e perceber qual é a história daquela família e o que ela valoriza como alimentação. 

De qualquer maneira, essa orientação vem mudando?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Já mudou demais. Quando me formei, algumas décadas atrás, a recomendação era introduzir, primeiro, suco de laranja lima coado na alimentação da criança — veja, não era qualquer laranja! Depois, entravam as frutas raspadinhas e, por fim, as papinhas feitas com uma batata, uma cenoura, caldo de carne… Desse jeito, a mulher tinha de preparar a comida do bebê separada da do resto da família, que ele só iria experimentar depois de completar 1 ano. Isso criava um monte de dificuldade! Repare que ficava quase mais fácil — e ainda bem que o Brasil não embarcou nessa onda — comprar a papinha pronta, aquela de potinho.

Então, a transição se tornou menos rigorosa. Mas como exatamente? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Sim, ela mudou até porque todo aquele rigor do passado não tinha embasamento científico. Hoje sabemos que essa transição deve acontecer por volta dos 6 meses. Mas existem bebês que estão mais prontos e já podem começá-la aos 5 meses. O fato é que, entre os 5 e os 6 meses, o cérebro passar a querer coisas novas. Se você introduz alimentos muito antes, dando uma fruta raspada aos 4 meses, ele não estará maduro para literalmente saborear o momento. E, se deixar para depois, terá passado um pouco a avidez pela experimentação. Daí, a introdução poderá ser mais complicada. Em resumo, devemos observar cada criança atentamente e respeitar o seu tempo.

E o que a criança deve consumir nessa fase? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Ela deve comer o que a família consome, só que com alguns cuidados. Por isso, durante todo o período de amamentação exclusiva, o pediatra deve levantar o que é servido à daquela casa. Se a família tem o hábito de comer arroz, feijão, carne, verdura, legumes e frutas, maravilha, dá para o bebê acompanhá-la, comendo mesma coisa, mas com facilitação de consistência, isto é, tudo deve ser amassado. Veja como fica mais simples! Um cuidado é o de reduzir o sal. O alimento do bebê não precisa ser sem sal, mas tampouco deve conter pitadas a mais desse condimento. Com o passar do tempo, é para aumentar a quantidade e a diversidade de ingredientes, amassando cada vez menos a comida no prato.

E se a alimentação da família não for assim tão exemplar? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Acontece. Por isso que digo que precisamos descobrir como essa família se alimenta enquanto o bebê ainda está no aleitamento materno exclusivo, para termos tempo para uma orientação mais direcionada. Ou seja, não é para trazer um rigor exagerado, mas é preciso não perder de vista que, mais dia, menos dia, a criança irá comer o que a família já colocava à mesa. O pediatra deve agir, sugerir novos hábitos, mas sem criar dificuldades intransponíveis, gerando tensões. Justifico: comer é o que chamamos de ato sensível e responsivo. Por exemplo, será que a mãe ou outro adulto está realmente olhando para o bebê na hora de alimentá-lo? Será que espera ele abrir a boca para enfiar a colher ou está forçando a entrada do talher na boca fechada? Alimentar alguém é uma relação. Por isso, impor à família uma série de regras de uma hora para outra pode tensionar esses momentos de troca.

O que acha do “Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos”? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Ao meu ver, ele é incrível. Isso porque se dirige aos profissionais de saúde, mas não deixa de se comunicar com a população. Ainda falta muita coisa para a gente chegar ao ideal, mas esse guia quebra barreiras. É um documento para todo mundo com criança pequena ter em casa.

Existem restrições alimentares nos primeiros anos de vida? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Existem duas que são muito importantes. Antes dos 2 anos, não devemos oferecer alimentos ultraprocessados, nem açúcar e tudo o que contém açúcar adicionado. Aliás, não importa se é um doce caseiro, por exemplo. 

Por que a criança com menos de 2 anos não deveria consumir ultraprocessados?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA —  A razão é clara: estamos falando de produtos com uma alta quantidade de sal, açúcar, gorduras e aditivos. A combinação os  torna hiperpalatáveis. Brinco que você pode gostar ou não de macarrão instantâneo, mas você terá a memória do sabor daquele saquinho de tempero em pó, se algum dia você o provou. Assim, imagine um cérebro em desenvolvimento, que está aprendendo os sabores da batata, da cenoura, da abobrinha, do cará, do frango, do peixe… Entra um alimento ultraprocessado desses em alguma refeição e a concorrência, eu diria, fica desleal. Não há como competir em relação à palatibilidade porque o ultraprocessado foi criado para isso. Então, a restrição não é apenas pelo seu conteúdo nutricional — que, sim, é pobre e altamente calórico. É também porque o consumo de ultraprocessados atrapalha terrivelmente  o desenvolvimento do paladar e, mais tarde, a família terá problemas para desfazer esse hábito. Será como se os alimentos saudáveis tivessem perdido completamente sabor. O cérebro não os reconhecerá com muita intensidade. O apetite se voltará paea mais ultraprocessados.

E o açúcar? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Ele entra dentro desse contexto. Lembre-se que o açúcar foi um ingrediente criado, que agora é encontrado até mesmo em alimentos salgados, como molho de tomate. Na verdade, existe açúcar oculto em uma série de alimentos e ninguém faz muita ideia. Bom esclarecer que, auando a gente fala em restringir o açúcar antes dos 2 anos, não importa se ele é refinado, cristral, mascavo, demerara. Qualquer que seja a sua apresentação, um dos problemas é que ele só tem calorias, não agrega nada além. Além disso,  age em receptores ligados aos mecanismos de recompensa no sistema nervoso central. Dá uma sensação de satisfação e, um tempo depois, quando essa sensação de recompensa desaparece, a pessoa sente vontade de comer mais doce.  O que observamos é que quem se acostumou com açúcar desde o início da vida terá aquela sensação de precisar de algo cheio de doçura para se acalmar. É neuronal. Por fim, o organismo humano não foi adaptado para consumir açúcar. No passado remoto, o gosto doce era aquele que do açúcar que estava naturalmente nos alimentos. A falta de adaptação abre brecha para doenças, como a obesidade. Mas, em resumo, o açúcar de adição, oferecido muito cedo, altera a formação do paladar, fornece calorias de que a criança não tem necessidade e, nas refeições, acaba ocupando o espaço de outros alimentos que seriam muito mais importantes para o seu desenvolvimento.

O que dizer das bebidas açucaradas, como os refrigerantes?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — A geração que hoje tem seus 40, 50 anos tomava uma garrafa pequenina de refrigerante, conhecida como “caçulinha”, na festa de aniversário do amigo. Mas os pais nunca ofereciam essa bebida aos bebês. O refrigerante se encaixa nas duas categorias de restrição de que falei: é ultraprocessado e tem açúcar de adição. Ponto. É extremamente danoso oferecê-lo antes dos 2 anos. Ora, 85% do desenvolvimento cerebral acontece até essa idade. Portanto, não dar refrigerante  ao nenê é protegê-lo em uma fase crítica, evitando que ele forme um paladar que não contribuirá para a sua saúde no futuro. Depois dos 2 anos,  essa bebida deixa de ser proibida, mas continuará sendo muito pouco recomendável. O interessante, porém, é o seguinte: crianças que não foram expostas a bebidas açucaradas nos primeiros 24 meses de vida não têm tanta vontade de tomá-las. Elas, em geral, parecem não gostar tanto. Mas, se desejarem, o refrigerante poderrá entrar como algo muito excepcional e em uma porção pequena, sem fazer parte do hábito. Como antigamente: só na festa e em um copo pequeno,  já que não fazem mais “caçulinha”.  A base da alimentação continuará sendo alimentos in natura ou minimamente processados. A principal bebida será a velha e boa água. E o suco deverá ser o caseiro, sem uma colher de açúcar adicionado sequer.

A partir de certa idade, essa supervisão tão de perto parece impossível… Alguns pais não radicalizam temendo perder o controle?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Para abordar esse aspecto, precisamos falar em segurança alimentar. Ela existe quando você tem uma diversidade alimentar suficiente dentro das preferências de sua família. A gente fala muito em insegurança alimentar causada pela falta de acesso devido a más condições econômicas. E, de fato, no nosso país  há uma parcela da população que, infelizmente, chega a  passar fome. No entanto, quando consegue dinheiro para ir ao mercado, as opções mais saudáveis e adequadas são muito caras. Então, é mais viável comprar o biscoito recheado para o filho que a fruta. Isso faz a luta contra a obesidade ser ainda mais dura. Mas também há insegurança alimentar nas famílias com condições financeiras que resolvem só dar alimentos integrais para seus filhos, que pretendem cortar o leite, o glúten ou sei lá mais o quê. Para a saúde, essa insegurança alimentar intencional, embora não se compare à falta de acesso, também é nociva. 

A criança em idade escolar tem certa autonomia em suas escolhas. Para orientá-las, a educação nutricional nas escolas não faria total diferença?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — É triste constatar, mas enquanto a gente conviver com essa situação em que tantas famílias não têm acesso a alimentos saudáveis, in natura ou minimamente processados, teremos muita dificuldade para fazer qualquer iniciativa maior de educação nutricional funcionar pra valer. O Brasil é muito desigual em matéria de acesso a uma alimentação adequada. E não me refiro apenas às pessoas de baixa renda. A classe média brasileira está experimentando insegurança alimentar também. Lógico, não estou dizendo que a educação nutricional nas escolas seja dispensável, que é a gente para desistir dela. Nada disso. Até porque, quando educamos, muitas vezes só vamos colher os resultados lá na frente. Pode dar a impressão que estamos falando para o vento, mas nunca é assim. E a criança é uma grande promotora de conhecimento sobre saúde. Ao pegar uma informação, ela acaba levando o que aprendeu para casa.

Crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade são frequentemente alvo de bullying dos colegas. Claro, existe gordofobia fora do ambiente escolar também. Para a Sociedade Brasileira de Pediatria isso teria um impacto relevante na saúde desses jovens?

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — O impacto pode ser imenso e, na SBP, temos um departamento específico de Saúde do Escolar que está de olho nisso. Em geral, ao perceber que uma criança sob os seus cuidados está sofrendo bullying, é papel do pediatra compartilhar a situação com os professores  — e sabemos que a palavra do profissional de saúde tem um peso enorme. Ou seja, o pediatra precisa escrever uma carta e, ainda, orientar a família para que ela vá à escola em busca de soluções. A gente sabe que o bullying precisa ser resolvido no exato momento em que ele ocorre. Ninguém pode deixar passar, fingir que não viu ou que não ouviu. O professor, o gestor, enfim, quem estiver por perto no ambiente escolar precisa conter imediatamente a situação. Porque o bullying é cruel. Abala a saúde de muitas maneiras e pode até tirar a vontade de a criança de socializar e frequentar as aulas.

A formação do pediatra prepara esse profissional para tratar a obesidade infantil? 

FABÍOLA SUANO DE SOUZA — Antes de responder a pergunta, quero observar o seguinte: dizer que um médico, qualquer que seja a sua especialidade, é capaz de tratar a obesidade soa até presunçoso. O tratamento da obesidade infantil precisa ser multidisciplinar. E é necessário que essa equipe com profissionais de várias disciplinas reflita sobre o seu objetivo ao tratar um caso de obesidade na infância e na adolescência. Qual é o resultado que se busca? É que a criança sofra menos bullying? É diminuir seu risco de desenvolver hipertensão ou diabetes precocemente?  O que você quer é que ela coma melhor? Ou que se exercite mais?  Faço esse questionamento porque muitas vezes as pessoas pensam que tratar a obesidade é baixar o peso e diminuir o índice de massa corporal. Mas, diante de uma doença tão complexa, os objetivos costumam ser mais amplos do que isso. E eu não tenho dúvida de que, para tratar a obesidade na faixa etária do nascimento ao final da adolescência, o pediatra está muito bem preparado. Ele sabe acompanhar o crescimento e o desenvolvimento de uma criança desde que o mundo é mundo. Ele tem seus gráficos para entender se ela está ganhando peso. A mãe não precisa pedir para o pediatra colocar na balança. E ele se preocupa com a alimentação desde sempre, esse tema já faz parte da sua consulta. *

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