O cardiologista Weimar Kunz Sebba Barroso de Souza conhece os corredores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás com a intimidade de quem está na própria casa: lá se graduou, fez residência médica e, desde 1998, atua na Unidade de Hipertensão Arterial, reconhecida por seu trabalho com ensino, pesquisa e extensão. “Temos hoje mais de 20 alunos de mestrado e doutorado, com uma produção científica robusta”, conta, orgulhoso.
Na Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), da qual agora é o presidente, já passou por diversas diretorias. Liderou o Departamento de Hipertensão Arterial entre 2012 e 2013, por exemplo. Também esteve à frente da diretoria científica em 2022, para fazer apenas duas menções de sua rica trajetória por lá.
Mas o coração bate mais emocionado quando lhe perguntam: por que, afinal, essa área? “Meu pai é cardiologista em Uruaçu, uma cidadezinha de 42 mil habitantes do interior goiano. O nome, em tupi-guarani, significa ‘pássaro grande’. Isso porque, quando os aviões começaram a voar pela região, era essa a impressão que os indígenas tinham”, explica. “E, ali, o meu amor pela Cardiologia nasceu muito cedo. Menino, eu acompanhava meu pai no hospital durante as férias. Daí que, no início da faculdade, eu já sabia que esse seria o meu caminho e, ainda no terceiro ano de curso, comecei a participar dos congressos da SBC.”
Hoje, esse “cardiologista de berço” tem o desafio de comandar a sociedade da especialidade que enfrenta as doenças que mais matam no mundo. No topo desse ranking estão o infarto agudo do miocárdio e o AVC, o acidente vascular cerebral. No Brasil, são mais de 1.100 mortes diárias, cerca de 46 por hora ou uma a cada 90 segundos, segundo dados da própria SBC.
O que esses desfechos cruéis têm a ver com a escalada da obesidade na nossa população? É o que professor Weimar esmiuça nesta entrevista à jornalista Lúcia Helena de Oliveira, que abre uma série de conversas com nomes importantes de algumas das principais instituições do setor de Saúde no país, como parte da campanha #vamosfalarsobreobesidade, realizada pela Abeso, em parceria com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a World Obesity Federation.
A obesidade sempre foi vista como um fator de risco cardiovascular, mas raramente era tratada. Acredita que esse cenário está mudando?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — É fato que a obesidade é uma ameaça à saúde cardiovascular, especialmente quando vem associada a mais fatores de risco, como hipertensão, dislipidemias, diabetes, entre outros. E isso nunca saiu do foco dos cardiologistas. Mas nós não tínhamos, até há pouco tempo, estratégias de tratamento ou fármacos que fossem seguros e efetivos tanto na diminuição do peso quanto na redução de desfechos cardiovasculares. Aliás, para o médico, esse era um problema frustrante, porque tratar a obesidade sempre foi difícil — e ainda é. Os medicamentos que tínhamos apresentavam diversos efeitos colaterais e pouca evidência científica sobre qualquer impacto nas doenças cardiovasculares. Isso vem mudando bastante, o que nos faz retomar com força o debate da obesidade como fator de risco e até onde ou em quais cenários os cardiologistas devem atuar quando estão diante de um paciente acima do peso.
Alguns pensam que, se a obesidade fosse abordada sem perda de tempo, a doença cardiovascular não avançaria a ponto de alcançar desfechos duros, como morte por infarto. Então, será que não haveria quase uma inércia terapêutica? Os cardiologistas não deveriam ser mais firmes no combate logo nos primeiros estágios da doença cardiovascular, orientando inclusive mudanças de estilo de vida para prevenir ou reduzir a obesidade?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Eu concordo com alguns aspectos. Aliás, acho que o correto nem seria falar em inércia terapêutica, mas em inércia clínica. Esse termo é antigo, foi publicado pela primeira vez em 2001 e se refere aos casos em que a gente tem evidência científica de algo e não faz bom uso dela. Isso se aplica tanto aos profissionais de saúde quanto aos pacientes. E certamente existe essa inércia em relação à adoção de hábitos de vida mais saudáveis, como boa alimentação, prática de atividade física e cuidados com a saúde mental.
Mas o Sr. diz que concorda com alguns aspectos. Do que, então, discordaria?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Não concordo com o conceito da obesidade como o centro entre os fatores de risco cardiovasculares. Eles incluem diversos problemas e não temos, ainda, a resposta do que acontece primeiro ou se tudo ocorre em conjunto. Reconheço que o raciocínio de controlar o sobrepeso e a obesidade logo no início faz todo o sentido, mas esse mesmo pensamento vale para a elevação da pressão arterial, para o aumento dos níveis de colesterol e de triglicerídeos ou, ainda, da glicemia. Sem dúvida, demoramos demais para cuidar de tudo isso. E uma reflexão, no que diz respeito à obesidade, é que ainda não temos estudos afirmando que o tratamento com medicamentos na fase inicial dessa doença seria efetivo para a redução de desfechos como infarto e AVC. A maioria dos trabalhos disponíveis até o momento tratou pacientes já em uma fase mais avançada. Claro, a lógica diz que, quanto mais cedo eu tratar, melhor. Mas, se vou buscar evidência científica a respeito disso, eu não a encontro. Então, pergunto: será que devemos prescrever medicamentos contra a obesidade para absolutamente todas as pessoas que começam a ter excesso de peso, pensando na saúde do seu coração? Talvez daqui a alguns anos a gente aplique a Medicina de precisão, lançando mão de ferramentas e biomarcadores para identificar quais seriam aqueles indivíduos que mais se beneficiariam com o início imediato de tratamento medicamentoso, seja para barrar o ganho de peso, para controlar a pressão arterial que começou a subir ou o que for.
Em relação às mudanças de estilo de vida, não se discute a ideia de elas começarem o quanto antes, certo?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Sem dúvida, isso é indiscutível! Eu costumo dizer para meus alunos e pacientes que não deveríamos falar em mudança de estilo de vida só para quem tem sobrepeso, obesidade ou outro fator de risco cardiovascular. Elas são para todo mundo, sempre. Deveriam ser recomendações constantes, de preferência antes adoecimento.
E como preparar o cardiologista para que ele, ao receber um paciente com obesidade no consultório, faça esse diagnóstico e, eventualmente, prescreva um tratamento ou encaminhe a outro especialista? A SBC pensa em algo nesse sentido?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Talvez por vício, a gente vinha insistindo mais na educação continuada do cardiologista naqueles temas com maior evidência científica de existir um impacto do tratamento na redução de desfechos cardiovasculares. E, como disse, isso mudou em tempos muito recentes. Adianto que, provavelmente, a obesidade será tema de grande destaque em nosso próximo congresso e, com certeza, estará mais presente em nossas ações educativas.
O Sr. diria que, hoje, existe uma lacuna de conhecimento sobre a obesidade entre os cardiologistas?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Há, sim, a necessidade de atualizar esse conhecimento. Não apenas falar sobre os últimos tratamentos, mas revisitar o tema da obesidade como um todo. Devemos relembrar os cardiologistas sobre as complicações associadas, o aumento da atividade inflamatória, sem contar o elo com a doença hepática gordurosa. A lista é grande! E, claro, um dos primeiros objetivos é incentivá-los a registrar o IMC e a circunferência abdominal de seus pacientes em cada consulta.
Nesse contexto, podemos dizer que o cardiometabolismo irá alçar um novo patamar?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — O cardiometabolismo já faz parte da nossa mesa de debate. Isso porque as alterações metabólicas, inflamatórias e imunológicas têm uma relação íntima com a doença aterosclerótica e com os males cardiovasculares em geral. É lógico que, quando você tem tratamentos mais efetivos para oferecer aos seus pacientes, passa a fazer mais sentido entender como todas essas alterações se relacionam entre si. E, por meio delas, também compreender as inter-relações entre órgãos, digamos, nobres, como o cérebro, o coracão e os rins. O doente renal crônico, por exemplo, em geral vai desenvolver complicações cardiovasculares. Seu adoecimento é no território renal, mas o desfecho é no sistema cardiovascular. E, sem dúvida, a obesidade costuma fazer parte do caminho que leva uma coisa à outra.
Na sua opinião, estudos como o SELECT, mostrando que o uso de um agonista do GLP-1 para tratar a obesidade foi capaz de reduzir em 20% a ocorrência de infarto, AVC e morte por doença cardiovascular, seriam divisores de águas?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Diria que estamos vivendo um momento muito bom na Cardiologia. Tivemos uma série de blockbusters. Eu me refiro a classes de medicamentos que mudaram a história da doença cardiovascular. Posso citar como exemplo o surgimento dos inibidores da enzima conversora de angiotensina nos anos 1980, usados para tratar a hipertensão, e das estatinas, prescritas para baixar o colesterol. Mais recentemente ainda, duas outras classes medicamentosas que, em princípio, tinham relação com o tratamento do diabetes, também se mostraram capazes de fazer enorme diferença na Cardiologia. Estou falando dos inibidores de SGLT2 — que revelam muita efetividade, em especial, na insuficiência cardíaca e na síndrome cardiorrenal — e dos agonistas do GLP-1. O efeito impressionante que esses agonistas têm sobre o peso corporal é muito bem-vindo para pacientes com obesidade. O SELECT testou o fármaco — no caso, a semaglutida — em indivíduos que não tinham diabetes, provando que a diminuição dos desfechos cardiovasculares entre os seus participantes não estava relacionada à redução da glicemia, mas à diminuição do excesso de adiposidade corporal. Porém, gostaria de frisar que ainda é cedo para generalizar.
Como assim?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Precisamos nos atentar que o SELECT avaliou pessoas com mais de 45 anos e doença cardiovascular prévia, como um infarto agudo do miocárdio ou um acidente vascular cerebral. Para nós, cardiologistas, esse é um perfil de paciente de alto risco. E, sim, o estudo esclareceu que, neles, houve benefício em relação ao grupo placebo e que, portanto, a redução do peso pode ser uma estratégia importante de proteção cardiovascular. No entanto, já ouvi comentários de colegas de que todo indivíduo com obesidade deveria se tratar com agonistas de GLP-1 para evitar infartos e AVC. Muita calma, porque nós ainda não temos essa evidência! Talvez o benefício não seja tão grande em pessoas com obesidade, mas sem doença cardiovascular prévia, ou em pacientes mais jovens. De novo, podemos deduzir que haja algum ganho, já que, reduzindo a obesidade, eu terei uma menor atividade inflamatória no organismo e vou melhorar outros parâmetros. Mas precisamos nos agarrar às evidências disponíveis até o momento. E aguardar antes de generalizar.
Agora, entrando na área à qual mais se dedica no dia a dia, qual seria a relação da obesidade com a hipertensão?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — A obesidade é um dos principais fatores que levam à elevação da pressão arterial. E a perda do excesso de peso, uma das estratégias mais eficazes para baixá-la. Tive a oportunidade de coordenar a última Diretriz Nacional de Hipertensão e, mesmo antes do aparecimento de novos fármacos para tratar a obesidade, já estava bem claro que as medidas mais efetivas de mudança de estilo de vida para reduzir a pressão arterial eram justamente aquelas que promoviam perda de peso, além da diminuição do consumo de sal. A gente costuma dizer que peso e pressão arterial caminham juntos. Quando o paciente com hipertensnao engorda, sua pressão tende a subir ainda mais. E vice-versa. Naqueles indivíduos com hipertensão resistente ou refratária — eles representam 10% dos pacientes com essa doença —, que precisam usar três ou mais classes de medicamentos, a obesidade costuma ter um papel ainda mais relevante. E perder o excesso de gordura se torna uma medida crucial.
O que, na intimidade dos vasos, explicaria o fenômeno de a pressão acompanhar a subida do ponteiro da balança ?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — São vários os mecanismos envolvidos. A obesidade, para começo de conversa, aumenta a volemia, isto é, o volume de sangue. Também ativa o sistema renina-angiotensina-aldosterona. Eleva a atividade inflamatória e favorece a disfunção do endotélio, que perde o equilíbrio entre a produção de substâncias vasoconstritoras e vasodilatadoras. A resistência vascular é outra que aumenta. Ou seja, a relação com a obesidade é muito forte porque ela termina atuando em várias frentes que culminam na pressão mais alta. Mas aproveito para observar que a hipertensão também nos mostra o seguinte: discutir qual seria o pior fator de risco é, no fundo, uma bobagem. Porque essas coisas estão todas interligadas. A obesidade leva à hipertensão. E a hipertensão, que por sua vez também provoca um estado inflamatório sistêmico, favorece uma obesidade mais central.
Muitas vezes, o médico ouve queixas de fadiga ou falta de fôlego e, sem pensar duas vezes, presume que esses sintomas seriam decorrentes do fato de o paciente estar acima do peso. Será, então, que a doença cardiovascular não poderia estar subdiagnosticada em pessoas com sobrepeso e obesidade?
WEIMAR BARROSO DE SOUZA — Essa é uma das nossas preocupações. Existe, por exemplo, uma entidade na Cardiologia que é a insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, ou ICFEP. Nela, a função ventricular fica preservada, mas há sintomas compatíveis com uma insuficiência cardíaca — inclusive, alterações em um marcador que, paradoxalmente, deveria aumentar justamente quando há a tal disfunção ventricular. E a obesidade favorece esse quadro. Por essa e por outras, uma mensagem que eu gostaria deixar é a seguinte: se você atende alguém com sobrepeso ou obesidade e ele tem qualquer sintoma sugestivo de insuficiência cardíaca, vale a pena solicitar um ecocardiograma e um exame de NT-ProBNP. Eles dão parâmetros para identificar o paciente com ICFEP. Isso é até mais fundamental se for um idoso com obesidade, já que a probabilidade de diagnosticar essa insuficiência cresce conforme a idade avança. Se os exames acusarem alterações, o indivíduo deverá ser encaminhado ao cardiologista. Afinal, nem todo cansaço é por causa de um corpo mais pesado — às vezes, ele entrega um coração que merece, depressa, maiores cuidados. *