Faz um mês: no último dia 14 de janeiro, o professor Giuseppe Repetto nos deixou. Abriu uma exceção, talvez. Pela primeira vez, não irá cumprir com um de seus compromissos — e olha, descontada a sua competência como médico, o que mais o tornava famoso era o hábito de seguir sua agenda à risca!
Se marcava um encontro, não se esquecia. Chegava invariavelmente antes do horário combinado. E nunca conseguia esconder a insatisfação com os atrasos alheios, mesmo que fossem mínimos.
As reuniões do Serviço de Endocrinologia do Hospital São Lucas, na capital gaúcha, eram às 10 da manhã das quintas, por exemplo. Pois bem: por decisão dele, ocorriam mesmo se era a Quinta-Feira Santa. Não queria nem saber.
Com essa mesma mania de organização, já tinha tudo bem planejado: queria reunir os amigos no próximo dia 1.º de julho para celebrar seus 83 anos. Iria recebê-los no sítio nas cercanias de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, com a esposa, a bioquímica farmacêutica Joice Repetto e, quem sabe, com os três filhos — Enrico, médico que atualmente mora nos Estados Unidos, o engenheiro Humberto e Bruna, que vive na Argentina, onde dá aulas de canto.
Boa parte dos convidados seriam os colegas que conquistou ao longo de uma vida dedicada à Endocrinologia e que transformou, um por um, em amigos.
“Tivemos uma grande convivência entre congressos, viagens e, claro, na diretoria da Abeso”, lembra um deles, o endocrinologista Henrique Suplicy, professor da Universidade Federal do Paraná, que foi vice-presidente da nossa associação entre 2003 e 2005, justamente quando o professor Repetto era o presidente.
“Nesse período, passei a admirá-lo ainda mais, como profissional e como pessoa”, continua. “Excelente didata, foi o responsável pela formação de um sem-número de médicos.”
Verdade. E, mais do que ensiná-los sobre hormônios, glândulas e afins, passou a todos os valores que, para ele, eram inegociáveis. A pontualidade é o exemplo clássico.
“No início, ele se interessava mais pelas doenças da tireoide”, complementa o professor Amélio Godoy-Matos, da PUC do Rio de Janeiro, seu colega de longa data. “Mas depois aderiu ao estudo e ao tratamento ético da obesidade e da síndrome metabólica. Acabou se tornando um dos fundadores da Abeso e um de seus melhores quadros, sem dúvida”
Seria possível preencher linhas e mais linhas que, com o verniz do afeto, reforçam a trajetória única do também fundador do Serviço de Endocrinologia do Hospital São Lucas, da PUC do Rio Grande do Sul.
Mas, àqueles que não tiveram a sorte de conhecê-lo de perto, precisamos voltar ao passado, talvez embarcar no transatlântico que trouxe o menino de seus 9 anos, nascido em Gênova, na Itália, no ano de 1940. É que dona Nina, a mãe, e o senhor Benigno, o pai, queriam levar a família para longe do clima pós-Segunda Guerra.
Um autógrafo Gary Cooper
Foi durante a viagem que o garoto conheceu o ator americano Gary Cooper (1901-1961), que então já tinha estrelado a adaptação para o cinema de “Adeus às Armas”, de Ernest Hemingway, e concorrido ao Oscar por “O Galante Mr. Deeds”. Era famoso, enfim.
Daí que o menino ficou impressionado ao ganhar uma fotografia autografada. E a guardou para sempre. Em uma ocasião, o professor Repetto, animado feito a criança de antes, mostrou-a ao seu colega Sergio Lerias de Almeida, companheiro de uma jornada de quase meio século no Hospital São Lucas.
“Na realidade, eu o conheci antes, em 1970, quando cursava a antiga Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre e ele me deu uma aula de nefropatologia”, conta. “Mas, naquela época, esse foi o nosso único contato.”
Mesmo assim, garante, acabou sendo marcante. “Isso porque aquele professor tinha uma aparência diferente da dos outros, uma extrema elegância ao se vestir que era bastante incomum, mesmo entre médicos”, diz ele.
O reencontro se deu quando Sergio Almeida já fazia residência na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Um pouco depois dessa época, Giuseppe Repetto convidou o jovem doutor para trabalhar com ele na PUC. Assim, o professor Almeida se tornou o seu assessor a partir de 1977. Os dois, juntos, só deixaram de dar aulas na graduação em 2015.
Aprendizados de berço
Presume-se que a personalidade de Giuseppe Repetto, embora tenha deixado a Itália na infância, tenha sido completamente moldada pela origem europeia. Coisa de família, também.
O pai era um engenheiro que trabalhava para uma grande multinacional. “Durante um período, morou na Índia e no Peru”, conta o professor Almeida, que chegou a conhecê-lo, desfrutando de longas conversas. “Era um homem extraordinariamente culto e isso, creio, influenciou o filho.”
Não à toa, quando não discutiam os casos que chegavam ao hospital, os dois colegas falavam sobre música e cinema, particularmente sobre as trilhas sonoras de filmes das décadas de 1940 e 1950. “Mas ele também entendia muito de ópera e me ensinou até sobre isso”, afirma Sergio Almeida.
Um coração gigante
Por falar na tal elegância, o professor Repetto nunca deixou de ralhar com um aluno que chegasse com um avental que não estivesse perfeitamente limpo ou no qual faltasse um simples botão. Despenteado no Hospital São Lucas? Ah, isso ele não permitiria jamais!
“Embora passasse uma imagem de dureza com suas críticas, causando a impressão de ser impermeável, no fundo era um coração mole. Cobrava, sim, mas era justo. E despertou em todos os integrantes do departamento um sentimento de família”, diz o colega.
As festas de Natal dessa turma, só interrompidas na pandemia e organizadas minuciosamente com meses de antecedência, eram históricas. Não há outro adjetivo para aquelas ocasiões, cuidadas em cada detalhe.
Já a fama de ter, digamos, o nariz em pé era sempre usada em favor da Medicina. Não se cansava de atormentar a direção do São Lucas até conseguir tudo o que achava necessário para o hospital funcionar.
Foi assim, por exemplo, quando resolveu criar uma biblioteca para os médicos, com os melhores livros e os periódicos mais relevantes para a atualização científica. Todos são unânimes em dizer que o lugar é um espetáculo. Sim, um de seus legados. E longe de ser o único.
“A Abeso é hoje o que é por mãos de brilhantes nomes da Endocrinologia brasileira e o doutor Repetto, sem dúvida, está nessa lista”, resume o doutor Bruno Halpern, atual presidente da associação que esse médico, com sua obstinação costumeira, ajudou a criar, emprestando tudo o que trouxe na bagagem desde aquela viagem de navio.