Introdução
A obesidade é epidemia e indiscutivelmente um fator de risco para diversas morbidades, mas, por aversão a esse crescimento, a sociedade tem desenvolvido também uma obsessão crescente pela magreza, num estereótipo muito difícil de ser alcançado, que pode incentivar práticas não saudáveis para controle do peso e perda de parte do ritual que envolve a comida e garante os valores culturais e simbólicos e o prazer da alimentação, levando a uma despersonalização do ato de comer.
A busca por uma vida saudável para prevenção e promoção da saúde tem se tornado alvo importante de grande parte da população atual. Entretanto, quando se fala em alimentação saudável, muitos associam à comida não saborosa, engordativa ou proibida, e situações não prazerosas que frequentemente se tornam foco de culpa, arrependimento, ansiedade.
Alguns pesquisadores, como Claude Fischler, nomearam essa época de lipofóbica, uma vez que esse estigma da obesidade não se refere apenas ao excesso de gordura e sua relação com a saúde, mas permeia questões morais, que sugerem capacidade ou habilidade social valorizada, ascensão ou manutenção de status, autocontrole, aumento da felicidade e até atribuem melhor personalidade aos que conseguem atingir a beleza física magra, e desqualificam e conferem características negativas ao individuo com obesidade.
Assim, o culto a magreza e as qualificações atribuídas aos magros têm contribuído para elevação do número de transtornos mentais relacionados à alimentação. Supervalorizar a magreza em detrimento da saúde pode invalidar a relação harmônica do homem com a comida, resultando em alterações importantes nas atitudes alimentares.
A imposição de dietas com regras pontuais de inclusão ou exclusão de alimentos a fim, unicamente, de suprir as necessidades nutricionais biológicas, mesmo que prejudicando as funções simbólicas da comida levou ao enfraquecimento da percepção dos mecanismos internos de controle de fome, saciedade e vontade e pode transformar o indivíduo em irreconhecível, exercendo certa violência simbólica sobre a opinião do sujeito sobre seu corpo e sobre o modo como o se relaciona com si, muitas vezes levando aos transtornos alimentares.
A ortorexia surge, nesse contexto, ligada à busca pela alimentação perfeita, assumida como um desafio e um objeto de vigilância; como um modo de sobrepujar o próprio instinto alimentar e as relações simbólicas com o alimento.
Definições
A ortorexia nervosa é uma desordem alimentar, não classificada como um Transtorno Alimentar oficial, pois não tem critérios diagnósticos estabelecidos definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), mas tem sido sugerido nos últimos anos como “comer transtornado” – do inglês disordered eating -, e algumas vezes enquadrado como Transtornos Alimentares não Especificados (Unspecified feeding or eating disorder (UFED) – DSM-5).
Foi descrita pela primeira vez pelo médico americano Steven Bratman, em 1997, que usou o neologismo grego: orthos = correto, ortodóxico. Ele descreveu um comportamento patológico, na forma de uma preocupação obsessiva por seguir uma alimentação saudável, que acarretava em restrições alimentares significativas.
O próprio Bratman, avaliando seu comportamento alimentar, viu-se demasiadamente preocupado com seu estilo de vida, com a qualidade dos alimentos escolhidos e em 2002 deu o seguinte depoimento: “eu era um vegetariano, comia legumes frescos e de qualidade plantados por mim, mastigava cada colherada mais de 50 vezes, comia sempre sozinho, em local sossegado, e deixava o meu estômago parcialmente vazio, no final de cada refeição. Tornei-me um presunçoso que desdenhava qualquer fruto colhido da árvore há mais de quinze minutos. Durante um ano fiz esta dieta, senti-me forte e saudável. Observava com desprezo àqueles que comiam batatas fritas e chocolates como meros animais reduzidos à satisfação dos seus desejos. Mas não estava satisfeito com a minha virtude e sentia-me sozinho e obcecado. Evitava a prática social das refeições e obrigava-me a esclarecer familiares e amigos acerca dos alimentos”.
Ainda com poucas pesquisas, o primeiro artigo original – “health food junkies” -, publicado em 2004, e descreveu a ortorexia nervosa como um quadro recente e de caráter paradoxal, que mostra o lado insalubre de um comportamento alimentar “obsessivamente saudável”.
Muito recentemente em 2016, pela primeira vez, foram publicadas propostas diagnósticas para a Ortorexia Nervosa:
Critério A. Foco obsessivo em comer “saudável”, definido um conjunto de crenças com detalhes específicos variados; marcado por angústia exagerada em relação às escolhas alimentares percebidas como deletérias; pode resultar em perda de peso, mas o objetivo principal não é estético, mas sim uma busca pela saúde ideal.
Características:
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Sobre as autoras:
Dra. Claudia Cozer Kalil – Doutora em Endocrinologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; coordenadora do núcleo de obesidade do hospital sírio libanes
Fernanda Pisciolaro – Nutricionista do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas da FMUSP; membro da ABESO.
Andrea Vargas Soares – Nutricionista do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas da FMUSP.