19 de fevereiro de 2016
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Memorial Prof. Dr. Alfredo Halpern 1941-2015

Tenho aqui a árdua tarefa de escrever um memorial profissional ao Prof. Dr. Alfredo Halpern,  como endocrinologista, mas claro, também como filho, que conviveu intensamente com ele na  vida pessoal e profissional, e que considero, acima de tudo, um grande mestre e professor. 

O Doutor Alfredo Halpern se formou na 49ª Turma da Faculdade de Medicina de São Paulo, no ano de 1966, quando em sequência iniciou sua residência em clínica médica. Tutorado pelo Prof. Antônio Barros de Ulhoa Cintra, percebeu que para se tornar especialista, em qualquer área, teria que ter sólidos conhecimentos de clínica geral. Devido a isso, organizou um Centro de Estudos dos Residentes de Clínica Médica e, talvez uma surpresa para quem hoje tanto o relaciona à Endocrinologia e à prática de consultório, foi um dos colaboradores que levou à criação da 1ª Unidade de Terapia Intensiva do Brasil, no Hospital das Clínicas, além de pertencer à primeira equipe de UTI do Hospital Albert Einstein. Após a residência, tornou-se assistente do Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, de 1968-1973, ano em que ingressou no Serviço de Endocrinologia e Metabologia. Paralelamente, foi orientador da Enfermaria Geral de Clínica Médica, que o levou a uma de suas atividades mais conhecidas e lembradas por seus contemporâneos até hoje: “A Caça ao Diagnóstico”, em que médicos levavam casos de difíceis diagnósticos e o Dr. Alfredo quase sempre os acertava com o menor número de exames complementares possíveis.Esse histórico inicial já demonstra o caráter generalista do Dr. Alfredo, que se considerava, acima de tudo, um clínico dos seus pacientes, e assim era considerado por eles. Demonstrava  também um excelente raciocínio clínico e talvez por isso tenha escolhido a Endocrinologia, uma especialidade que sempre definiu como “a mais inteligente da Medicina”. Digo isso, pois assim ele me apresentou a especialidade que tanto amava, já nos meus primeiros anos de vida, mostrando quão fascinante era o mundo dos hormônios e seus feedbacks (paixão que me passou naturalmente e me levou a trilhar um caminho semelhante). Meu pai sempre gostava de lembrar que no seu início na Endocrinologia quase não havia dosagens hormonais (e muitos dos hormônios ainda não eram conhecidos), de maneira que a necessidade de lógica era ainda maior, com testes provocativos para diagnosticar doenças que hoje são facilmente identificáveis com coletas de exames simples. Confessava que sentia alguma saudade desse tempo, e que hoje com tantos exames, muitos médicos perderam a capacidade de pensar. 

Sua tese de doutorado foi orientada pelo Prof. Dr. Bernardo Leo Wajchenberg, no Grupo de Diabetes e Adrenal, sobre mecanismos de ação de biguanidas em indivíduos normais e intolerantes à glicose, em que começou a trilhar mais fortemente seu caminho para o estudo de doenças metabólicas. Apesar disso, manteve seu foco em Endocrinologia Geral, fundando o grupo de mesmo nome em 1978, até hoje brilhantemente conduzido pela dra. Maria Adelaide Albergaria. Pelas próprias palavras do Dr. Alfredo “Nele (o grupo geral), posso dizer que tive uma extensão natural do meu interesse pela Clínica Médica (…) pois tive contato com pacientes portadores de todos os tipos de doenças endocrinológicas e metabólicas” (1).

Sua incrível capacidade de enxergar além do óbvio o levou ao estudo da obesidade. Novamente em suas palavras: “(o interesse pela obesidade) se manifestou desde que passei a  exercer a clínica privada. Causava-me espanto o fato de quem em todo meu período de graduação e de residência em clínica médica, incluindo-se aqui a endocrinologia e metabologia, ensino sobre a obesidade fosse tão exíguo (praticamente nulo), ao passo que na prática clínica pelo menos 60% dos meus pacientes tinham queixa de excesso de peso. Sendo assim, e em boa parte porque o tratamento destes pacientes se concentrava na sua maioria nas mãos de maus profissionais, resolvi aprofundar-me no seu estudo e no seu manejo” (1).  Ora, se fosse uma alteração tão trivial, facilmente resolvida com mudanças de estilo de vida, afirmação que o tirava do sério e ainda é tão comum, não haveria tanta gente buscando ajuda para esse problema. Rapidamente compreendeu que a obesidade era uma doença (mais de 30 anos antes da Associação Americana de Medicina) (2) de tratamento complexo. Na década de 80, participou dos primeiros congressos do assunto e se tornou o grande pioneiro no país, participando desses primeiros eventos, estudando o que até então se sabia e fundando, em 1986, a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (ABESO), a que permaneceu ligado até seus últimos dias. Na mesma época, fundou o Grupo de Obesidade do HC, o primeiro do Brasil (e até hoje um dos únicos) e ao mesmo tempo, estudando bócios endêmicos, tornou-se Professor livre-docente.  Acompanhou deperto as mudanças no estudo da obesidade, o surgimento e desaparecimento de diversas medicações, o despertar do tratamento cirúrgico (curiosamente, o grande patrono no Brasil, foi seu grande amigo de faculdade, Dr. Arthur Garrido), o descobrimento de hormônios, vias de fome e saciedade e genes, que só respaldaram aquelas suas primeiras visões clínicas. Organizou um Congresso Mundial de Obesidade, em 2002, teve cargos internacionais, como presidente da Federação Latinoamericana de Sociedades de Obesidade e manteve íntimo contado com grandes especialistas do assunto no mundo, como o amigo Eric Ravussin, com quem fez um estágio no Arizona com os índios Pima.

Embora sempre tenha se considerado acima de tudo um clínico, o dr. Alfredo foi também um grande pesquisador, com mais de 200 publicações indexadas, com bom nível de impacto e reconhecido em congresso internacionais e com diversos alunos de mestrado e doutorado. Sua última publicação em vida foi no New England Journal of Medicine, como coautor do estudo que avaliou liraglutida em obesos não diabéticos (3).

Sua trajetória profissional, no entanto, esteve longe de se restringir aos meios acadêmicos. Famoso por ter criado a Dieta dos Pontos, mais uma vez foi pioneiro, pois sempre acreditou que para o balanço ponderal, “calorias são calorias”. Anos e anos de pesquisas controversas em nutrição se passaram e hoje esta se tornou a teoria mais aceita. Recentemente, num comentário que fiz sobre mais um artigo sobre o assunto (4), uma leitora respondeu “Ué, mas isso é o que o dr. Alfredo fala há quarenta anos!”. Correto! Atingir esse balanço negativo deveria, porém, ser individualizado para um adequado aporte nutricional e ele trouxe as nutricionistas para o seu lado, trabalhando com dezenas delas em seu consultório, boa parte das quais se tornaram referências na área. 

O Dr. Alfredo foi também o primeiro no Brasil a defender abertamente o uso de remédios para o peso, até então considerado tratamento de maus médicos (infelizmente, essa cultura antimedicações para emagrecer permanece forte até hoje e um de seus últimos artigos identifica algumas razões para tanto estigma) (5). Ele assistiu a ascensão e declínio de diversas delas, algumas proibidas por efeitos colaterais inaceitáveis, porém sempre foi um incansável defensor de novas opções e sem dúvida, sua voz ativa recentemente ajudou na manutenção da sibutramina no Brasil.

E com sua imensa capacidade de comunicação e de adaptar o discurso à plateia que o assistia, conseguiu o que poucos conseguem: além de ser um médico altamente respeitado pelos pares e forte cientificamente, como descrito acima, foi também um excelente professor, com aulas sempre concorridas, e também adorado pelo público leigo. Entre os residentes de Endocrinologia, suas discussões de casos clínicos de consultório eram sempre aguardadas, por sua imensa disponibilidade de ensinar um pouco de mundo real a quem passou os últimos anos dentro de um Hospital-Escola. Para pacientes e o público, era amado pela capacidade de tratar temas espinhosos com linguagem coloquial e pela empatia com os obesos, os quais sempre dizia serem menos culpados do que a sociedade os considerava. Ficou orgulhoso quando foi reconhecido pela primeira vez, quando era garoto, o que posteriormente tornou-se corriqueiro. Foi colunista da Revista Saúde, da Band News e nos últimos anos, consultor do Programa Bem-Estar. Escreveu 24 livros, a maioria para o público leigo e o primeiro, “Entenda a Obesidade e Emagreça” o mais vendido, com mais de 300 mil exemplares. Eu o reli há poucos dias e é impressionante como, mesmo publicado em 1994, ele permanece atual, com diversas considerações de observações clínicas que só se comprovaram cientificamente décadas depois, mas que seu feeling clínico já tratava como verdade desde então. 

No consultório, destacava-se pela pontualidade, odiava esperar e usava cada espaço livre de sua agenda para ler ou produzir. Sempre foi tão apressado, que partiu quando ainda havia muito a fazer por aqui. Um agressivo câncer pancreático o tirou de nós em pouco tempo, 15 meses, tempo ínfimo para quem o conheceu com toda sua jovialidade, cultura, sorriso no rosto, humor e paixão pela vida. Aprendi com ele mesmo após sua partida, entendendo que o alcance de suas palavras simples foi ainda maior do que imaginava. Muitos pacientes choraram em consulta, recebemos mensagens de centenas de desconhecidos que se comoveram com a notícia e até documentos oficiais de pesar de Câmaras Municipais. Provas de que o que fez foi bem feito e que faz com que me espelhe ainda mais nele como meu grande mestre. 

Como li uma vez em um conto de David Eagleman, não morremos de verdade enquanto nosso nome for pronunciado na Terra. E com todo esse legado, tenho certeza que Alfredo Halpern será um nome que ressoará por diversas gerações. E esse Memorial é uma prova disso. 

1 – Halpern A. Memorial. São Paulo, 2004 

 2 – Pollack A. A.M.A. Recognizes obesity as a disease. [Internet]. 2013 [cited 2014 Nov 20]. Available from: 

http://www.nytimes.com/2013/06/19/business/ama-recognizes-obesity-as-a-disease.html.

3 – Roberts SB, Krupa Das S. One strike against low carbohydrate diet. Cell Metabolism. 2015; 357-358

4 –Halpern B, Halpern A. Why are anti-obesity drugs stigmatized? Expert Opin Drug Safey 2015; 14(2):1865-9

5 –Pi-Sunyer X, Astrup A, Fujioka K, et al. A randomized, controlled trial of 3.0 mg of liraglutide in weight 

management. N Engl J Med. 2015; 373(1):11-22

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