18 de março de 2024
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MARIA CELESTE WENDER: “Não dá para cuidar das mulheres sem prestar atenção na obesidade”

Desde que foi criada em 1959 até o ano passado, 2023, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) teve exatos dezoito presidentes. Todos homens. Só agora, depois de 65 anos, a entidade que tem em sua missão a valorização da saúde das mulheres é presidida por… uma mulher! 

A primeira palavra que vem à cabeça da médica gaúcha Maria Celeste Osório Wender para descrever o sentimento de ser a décima-nona presidente da federação é esta: “Paixão. Sou apaixonada pela minha área, porque, em última análise, o que ela quer é ver as mulheres bem”. 

Professora titular na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), onde ocupa a chefia de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, ela passou os últimos oito anos se dedicando também à Febrasgo — metade deles como vice-presidente para a região Sul e a outra metade, como diretora  de Defesa e Valorização Profissional.

Apesar da rotina agitada, desdobrando-se em seus múltiplos papéis, ela fez questão de arrumar um espaço na agenda para conceder entrevista à jornalista Lúcia Helena de Oliveira, como parte da campanha #vamosfalarsobreobesidade, realizada pela Abeso, em parceria com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a World Obesity Federation

“Esse tema tem tudo a ver com o que eu e os meus colegas fazemos”, diz a doutora Maria Celeste. “A gente sabe que essa doença é cada vez mais comum nas pacientes e que ela tem um enorme impacto na saúde feminina. Não dá mais para cuidar das mulheres sem prestar atenção na questão da obesidade.”

A mulher com obesidade, quando vai ao ginecologista, talvez não esteja pensando em falar sobre seu peso, até porque o foco da consulta costuma ser outro. A sra. acha que seus colegas têm alguma dificuldade para abordar o assunto quando não é a paciente quem puxa essa conversa?

MARIA CELESTE WENDER — Pode haver um pouco de barreira por parte de alguns profissionais, sim, apesar de que menos do que antes. Mas essa barreira precisa ser quebrada. E, para isso, é necessário disseminar a informação de que a obesidade é uma epidemia que traz riscos importantes para a saúde da mulher. Aliás,  não é improvável que o acúmulo de gordura no corpo esteja relacionado com aqueles problemas que a paciente já está trazendo aos nos procurar. Sem contar a probabilidade de ela desenvolver outras doenças e complicações no futuro. Diante dessa ameaça — não fazendo diferença se é uma menina adolescente, uma jovem mulher, uma gestante, uma mãe no puerpério ou alguém que já está na menopausa —, o ginecologista deve perguntar na consulta: ‘o que acha de conversarmos sobre o seu peso? Como está enxergando isso?’, iniciando a abordagem. Não há a mínima possibilidade de existir uma boa relação médico-paciente se o ginecologista e obstetra, vendo uma mulher com obesidade sob seus cuidados e sabendo dos riscos que ela corre, não tocar nesse assunto. Na minha opinião, não é admissível.

Pensando na jornada da mulher, uma das primeiras queixas que podem chegar ao ginecologista é a da jovem com sintomas de ovários policísticos. Será que poderia explicar sua relação com o sobrepeso e a obesidade?

MARIA CELESTE WENDER — Sim, claro! Em uma mulher que acumula muita gordura corporal, costumamos encontrar uma maior resistência ao hormônio insulina — portanto, taxas mais elevadas de glicemia —,  além de um excesso de hormônio masculino, capaz de provocar acne e pelos em regiões indesejadas. Mas não só isso! Os efeitos hiperandrogênicos, isto é, desse hormônio masculino além da conta, podem levar a uma apresentação mais ‘masculina’ de obesidade, que seria mais central, com a gordura em excesso concentrada na região do abdômen. É uma distribuição do tecido adiposo que está mais associada a riscos cardiovasculares. No ginecologista, porém, a queixa frequente de quem tem esse quadro é a dificuldade para gestar. Isso porque, com essa combinação de resistência insulínica, glicemia elevada e excesso de hormônios masculinos, há maior estímulo para os ovários formarem cistos.  E, por sua vez, quando os ovários são tomados por cistos, eles não ovulam. Daí por que não é fácil engravidar.  Só que é preciso explicar o seguinte: o simples fato de a mulher ter obesidade já diminuiu as chances de ela ficar grávida em comparação com mulheres com IMC normal. Não precisa necessariamente haver um diagnóstico de ovários policísticos.

Por que razão? 

MARIA CELESTE WENDER — A obesidade, como todos sabem, cria uma inflamação constante e sistêmica. E o organismo inflamado é um ambiente onde há um pior desenvolvimento dos ovócitos, as células que dão origem aos óvulos. Sem contar que essa inflamação persistente prejudica o revestimento interno uterino, o chamado endométrio. Ora, uma vez fecundado, o óvulo desce até o útero para se fixar justamente nessa parede. Mas o endométrio da mulher com obesidade tem uma menor receptividade. Ou seja, mesmo que o óvulo tenha sido fecundado, esse tecido tende a não ter tanta qualidade para aninhar um embrião e sustentar essa gestação.

Quer dizer, então, que o tratamento para reduzir ou controlar a obesidade deveria ser indicado para mulheres que planejam engravidar?

MARIA CELESTE WENDER — Com certeza, o planejamento de uma gravidez passa por aí.  Para ser mais precisa, eu diria que passa pela observação do que nos diz a balança. Porque aquela mulher que, no outro extremo, está muito abaixo do peso também apresenta dificuldade para ter um bebê. Na realidade, a chance de engravidar é maior em uma faixa de peso normal. Quanto mais a mulher se distancia dela — se está muito magra, até por conta de dietas malucas, ou se  tem obesidade —, maior a tendência à dificuldade para gestar.

E quando a mulher com obesidade não pretende ter filhos, há alguma orientação específica em relação aos métodos anticoncepcionais?

MARIA CELESTE WENDER — Hoje contamos com uma enorme gama de métodos para evitar uma gestação, tanto hormonais quanto de barreira. Mas devemos estar atentos ao seguinte: a mulher com obesidade apresenta um maior risco de hipertensão em relação à população feminina sem obesidade. E, para as pacientes com hipertensão, é melhor evitar anticoncepcionais combinados por via oral. A principal razão é que, na composição deles, existe o estrogênio sintético, que pode causar complicações cardiovasculares nesse grupo. Agora, se paciente estiver acima do peso, mas com pressão arterial normal e sem outras comorbidades, em tese ela até poderia fazer uso de pílula anticoncepcional. Friso que estou falando ’em tese’ porque, na prática, como a obesidade nunca vem sozinha, quase sempre aparecem mais fatores de risco cardiovascular.  Por causa deles, o ginecologista muitas vezes prefere, por segurança, prescrever outros métodos— como o DIU, só para citar um exemplo. O fato é que ele deve dar orientações sobre os métodos anticoncepcionais mais adequados examinando caso a caso e explicar tudo à paciente para que a escolha final seja compartilhada.

Se chega ao consultório do ginecologista e obstetra uma mulher com obesidade que já tem um teste positivo de gravidez em mãos, como ele deve lidar?

MARIA CELESTE WENDER — Esta pergunta é importante. E digo isso por ser uma situação mais e mais frequente. Na minha experiência no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, noto que número de gestantes que já estavam com excesso de peso antes de engravidarem é cada vez maior. E, entre elas,  vem aumentando a proporção de pacientes com um quadro mais avançado de obesidade. Na minha opinião, até para que a mulher entenda a necessidade de um acompanhamento ainda mais cuidadoso, o ginecologista e obstetra deve mostrar, de cara, que a obesidade é um fator capaz de aumentar o risco de diversos problemas durante a gestação: o de desenvolver hipertensão e até mesmo ter pré-eclampsia; o de ser diagnosticada com diabetes gestacional; o de ter para um parto pré-termo e o de sofrer uma trombose venosa. A prevalência de trombose venosa, aliás, vem aumentando muito não só durante a gravidez, mas no puerpério. Penso que o avanço da obesidade entre as mulheres tem muito a ver com isso.

MARIA CELESTE WENDER — E como ficaria o controle do peso durante a gestação dessa mulher que já tinha obesidade?

MARIA CELESTE WENDER — Orientar para o emagrecimento, nessa fase, não é algo que se possa fazer com a segurança de que não haverá prejuízo para o bebê. No momento em que se restringe calorias na dieta da mãe, o filho em sua barriga também pode sofrer restrições. Portanto, melhor deixar para tratar a obesidade depois do nascimento da criança. O que fazemos, então, é estabelecer um alvo de ganho de peso muito inferior em relação ao de mulheres que tinham um IMC normal antes da gravidez. Ou seja, a gente não quer que essa mulher com obesidadade ganhe tanto peso durante o período gestacional. Mas, evidentemente, ao colocar esse alvo mais baixo, é preciso monitorar muito mais de perto o crescimento e o desenvolvimento do bebê.

A obesidade também aumentaria os riscos na hora do parto?

MARIA CELESTE WENDER — Infelizmente, ela aumenta os riscos tanto para a mãe quanto para o bebê, que pode apresentar macrossomia, isto é, pode crescer excessivamente. E, no parto normal, a probabilidade de um bebê macrossômico sofrer traumas acaba sendo maior. O mais comum é o que chamamos de distócia de ombros: a cabeça da criança surge pelo canal de parto, mas os ombros são largos e grandes demais  para passar entre os ossos do sacro e do púbis da mãe. Quando isso acontece, temos uma emergência obstétrica. Talvez se perguntem: será que, para evitar algo assim, a cesárea não seria sempre uma boa solução para a gestante com obesidade? E eu vou responder que essa não é decisão tão simples, porque todos os riscos cirúrgicos — incluindo o de sangramentos e o de  tromboembolismo —estão aumentados na mulher que está muito acima do peso. Vale eu lembrar que a obesidade costuma ser acompanhada de comorbidades, ainda por cima. Não à toa, estudos mostram que a mulher com obesidade que consegue perder peso antes de engravidar apresenta um risco menor de evoluir para tudo isso. E, sob esse ponto de vista, é uma pena quando ela procura o ginecologista e obstetra já grávida, sem o especialista ter a mesma oportunidade de agir para  prevenir  complicações relacionadas ao excesso de peso.

Pensando em neoplasias, muito se fala sobre a associação entre tumores malignos de mama e a obesidade. Mas o câncer de endométrio é outro que tem a ver com o excesso de peso. Por quê?

MARIA CELESTE WENDER — É fácil entender. Quando a mulher ovula, seu organismo produz o hormônio progesterona. Ocorre que, se ela tem obesidade,  ovula menos vezes e, portanto, produz menos progesterona ao longo da vida. Proporcionalmente, então, libera muito mais o outro hormônio feminino, que é o estrogênio. Sem a oposição da progesterona para contrabalançar, esse estrogênio irá estimular demasiadamente o endométrio, a parede interna do útero. Agora imagine: a falta de progesterona por anos a fio provoca uma proliferação exagerada das células desse tecido, o que aumenta a probabilidade de, um dia, surgir uma delas com mutações capazes de torná-la maligna. Precisamos falar mais sobre isso, assim como devemos falar mais sobre o câncer de mama, que está extremamente associado à obesidade na mulher em idade pré-menopausa. Se bem que os casos vêm crescendo em pacientes ainda mais jovens, não só aqui no Brasil, mas no mundo inteiro.  O aumento nas taxas de sobrepeso e obesidade nessa faixa etária pode estar por trás desse fenômeno também.

Na menopausa, há uma tendência ao ganho de peso e a mudanças na distribuição de gordura. Como o ginecologista poderia intervir? 

MARIA CELESTE WENDER — Na Febrasgo, estamos sempre orientando: pesem suas pacientes desde sempre. Assim, ao sinal de um ganho de peso mais consistente, que não tenha sido causado por uma situação esporádica, será possível lhes fazer um alerta, antes que a obesidade se instale. Lembrando que a obesidade é uma doença crônica — se surgir, o tratamento será para o resto da vida. Só que, por mais que a gente repita essa orientação, o seu impacto ainda deixa bastante a desejar. Porque a realidade é que a mulher consulta um profissional diferente a cada vez que marca consulta no ginecologista. Desse jeito, o histórico de peso se perde. Mas, ao menos na gestação, gostaríamos que a atenção dos ginecologistas e obstetras fosse redobrada. Todos nós sabemos que, se a gestante ganha muito peso e se não perde os quilos extras durante o período de amamentação, ela provavelmente não eliminará todo o excesso depois. Ao menos, não o eliminará sem um tratamento multidisciplinar voltado para isso.

Na sua opinião, o ginecologista deveria se preparar para entrar para esse time e prescrever tratamentos contra a obesidade?

MARIA CELESTE WENDER — Eu sou absolutamente favorável a essa ideia. Acho que o ginecologista poderia estudar e se preparar para tarefas, digamos, complementares, que não são específicas da sua especialidade, mas que fazem parte do atendimento da mulher. Seria um reforço ao time de especialistas, que, no caso, são os endocrinologistas. Porque é fato que a mulher passa pelo ginecologista para cuidar de sua saúde. Precisamos somar forças contra a obesidade. *

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