Se for para resumir a trajetória profissional de Antônio Carlos Valezi, ela parte de Londrina, no Paraná, onde ele se graduou em Medicina. Mas, logo em seguida, arrumou as malas para fazer mestrado na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. E, por lá também, fez doutorado, pós-doutorado e livre docência, sempre focado na cirurgia digestiva. Até que passou em um concurso para se tornar professor da Universidade Estadual de Londrina, cidade para a qual, no final das contas, acabou retornando.
Ao longo desse percurso, o ano de 1998 merece destaque. Afinal, foi nele que Valezi encontrou uma colega endocrinologista que lhe provocou: “Nós tínhamos muitos pacientes com obesidade severa passando pelo serviço da universidade já naquela época. E ela estava inconformada. Eu, então recém-chegado de São Paulo, comentei que tinha tomado conhecimento de que o professor Arthur Garrido, da Faculdade de Medicina da USP, estava operando indivíduos para tratar obesidade grave. Na verdade, os cirurgiões sempre fugiram desses pacientes, por serem tecnicamente difíceis de operar e com mais complicações.”
Mas, contagiado pelo inconformismo da colega , que se sentia sem nada a oferecer a quem tinha um IMC muito elevado e um monte de comorbidades, ele resolveu ver de perto o serviço do célebre cirurgião que, seis anos antes, em 1992, tinha fundado a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, da qual, hoje, Valezi é o presidente. Sim, aquele primeiro contato com a cirurgia bariátrica foi impactante o bastante para, de ela para cá, o professor Valezi se dedicar com afinco a ela, como contou à jornalista Lúcia Helena de Oliveira.
A conversa faz parte da série de entrevistas com líderes de sociedades de especialidades, promovida pela campanha #vamosfalarsobreobesidade, da Abeso com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a World Obesity Federation.
Às vezes, a gente tem impressão de que a bariátrica é um tratamento estigmatizado para tratar uma doença que também é muito estigmatizada. Ainda existe o desafio de mostrar que o tratamento cirúrgico não é a “saída fácil” para a obesidade?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — Acho que temos dois desafios. O primeiro é a conscientização de que a obesidade é uma doença. Ninguém tem obesidade porque é relaxado ou desleixado. A pessoa tem obesidade porque é metabolicamente programada para acumular gordura e seu organismo, além de ávido por calorias, é um grande poupador de energia. Parece um conceito muito simples, mas ele não é assim tão óbvio para a população e, infelizmente, entre os médicos também. O segundo ponto é justamente este que você tocou: a cirurgia bariátrica é um método para tratar uma parcela de pacientes com uma doença crônica. E está aí mais uma frase que parece simples, mas que merece reflexão: nenhuma doença crônica se resolve com um tratamento único. Assim como o tratamento de uma doença crônica deverá ser seguido a longuíssimo prazo, ou melhor, pelo resto da vida. É necessário o comprometimento do paciente nos momentos antes e depois da cirurgia, mas também no restante de sua existência, cuidando da alimentação, da atividade física, de comparecer a consultas regulares e fazer exames. Veja, isso não é algo fácil. Logo, o tratamento cirúrgico está longe de ser a saída de quem quer um atalho.
Essa ideia de ser uma saída fácil atrapalha?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — Atrapalha, principalmente se o próprio paciente se deixa levar por ela. Ele precisa, sobretudo, tomar consciência da importância de manter o acompanhamento da equipe de bariátrica. Não é diferente de ter uma hipertensão. Para quem tem pressão arterial alta, não adianta tomar o medicamento e esquecer. Esse indivíduo deverá acompanhar sua saúde com o cardiologista, fazer exames de tempos em tempos, ingerir menos sal no dia a dia e praticar exercício físico regularmente. É a mesma coisa com a bariátrica. Não é para o paciente se submeter à cirurgia e pensar que ‘pronto, acabou, deu tudo certo’.
E esse comportamento é comum?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — A verdade é que o seguimento ainda é muito, muito baixo. É bem mais comum o paciente operar e sumir, só retornando quando tem algum problema — e, na maioria das vezes, é um problema que poderia ter sido perfeitamente evitado, se ele estivesse sendo acompanhado de perto.
O SUS (Sistema Único de Saúde) oferece a cirurgia bariátrica, mas não oferece medicamentos contra a obesidade. Como o senhor vê isso?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — Apesar de eu lidar com o tratamento cirúrgico, a trajetória de cuidados com a obesidade deveria ter começado lá atrás, com mudança de estilo de vida e, depois, a introdução de medicamentos. A cirurgia bariátrica seria a ponta final. Muitos pacientes são operados porque, de fato, tentaram outros tratamentos e estes falharam. Mas outros talvez não tivessem se tornado pacientes com obesidade grau 3 ou com comorbidades severas, candidatos à operação, se tivessem recebido uma série de cuidados antes. Há todo um arsenal disponível para o bom tratamento desses pacientes. Hoje temos drogas muito boas, mas que não são disponíveis para boa parte da população, até porque são bastante caras. Não estão disponíveis no sistema público de saúde, nem sequer no suplementar.
Suponho que a falta de acesso a esses tratamentos seja um dos fatores por trás das filas enormes de pacientes candidatos à bariátrica. Como anda essa demanda?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — Atualmente, temos 4 milhões de indivíduos elegíveis para a cirurgia bariátrica no Brasil. A maioria deles depende do SUS. Para você ter ideia, hoje só conseguimos operar 2% das pessoas candidatas à cirurgia no sistema privado, na saúde suplementar. Mas, no SUS, conseguimos operar menos que 0,5% dos pacientes elegíveis.
Como melhorar esse cenário?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — Na SBCBM, estamos buscando uma interlocução com o Ministério da Saúde para propor algumas soluções. Para começo de conversa, nós temos 7.700 hospitais no país e apenas 97 deles são credenciados para a realização de cirurgia bariátrica no sistema público. Está claro que precisamos aumentar esse número. Em segundo lugar, existe a necessidade de qualificação profissional, por incrível que pareça. E nós, na SBCBM, temos não só médicos, mas nutricionistas, educadores físicos e psicólogos, entre outros, que podem ajudar nesse processo de qualificação de novas equipes dedicadas ao tratamento cirúrgico da obesidade. Só que, acima de tudo, precisamos de uma política pública. O governo deve tomar essa iniciativa. Nós estamos à disposição para colaborar e temos as ferramentas para isso, inclusive para acompanhar os desfechos dos pacientes bariátricos.
Há quem fantasie que as novas gerações de medicamentos contra a obesidade, ao promoverem perdas bastante expressivas de peso, poderiam substituir a necessidade de bariátrica um dia. O que teria a dizer sobre isso?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — Os medicamentos que estão surgindo são, de fato, ótimos. Seguros e com excelentes resultados em um primeiro momento. Mas temos de nos lembrar que eles estão sendo usados por um curto período, se a gente os compara com a cirurgia, que já soma décadas de estudos. E, por melhores que sejam os resultados adiante, não acredito que a cirurgia bariátrica vá perder o seu lugar. Aliás, é maravilhoso contar com esses novos fármacos. Porque teremos menos pacientes à espera da bariátrica. Muitos deles, graças a esses remédios, responderão muito bem ao tratamento clínico. Sensancional! Afinal, já dei uma noção do tamanho do universo de pessoas elegíveis à bariátrica e que não conseguem ser operadas. Não vai faltar trabalho, se ficarmos apenas com os casos de quem, mesmo com os medicamentos, ainda precisa perder mais peso. Assim como existirão pacientes que, depois da cirurgia, não emagreceram adequadamente ou que tiveram reganho de peso. Para eles, os medicamentos podem ser uma boa solução. Enfim, não vejo uma competição. Os novos medicamentos não tiram paciente do cirurgião. O cirurgião, de seu lado, não tira pacientes do endocrinologista. Somos especialidades afins, que compartilham o mesmo objetivo: oferecer à pessoa com obesidade o melhor tratamento possível. Para uns, ele será o tratamento clínico. Para outros, o cirúrgico. O paciente é que deve estar no centro sempre.
Em relação à segurança da cirurgia, que é o temor de muitos, o que podemos dizer?
ANTÔNIO CARLOS VALEZI — A cirurgia é sabidamente, pelo menos até o momento, o método que promove a maior perda de peso e que mantém esse resultado pelo mais longo prazo. Inclusive, quando você compara com os medicamentos contra a obesidade. E uma coisa que melhorou muito foi a segurança do procedimento cirúrgico. Para você ter ideia, a mortalidade de uma cirurgia bariátrica, mesmo lidando com pacientes complexos, é menor que a mortalidade de uma revascularização do miocárdio. Na realidade, é equivalente à de uma operação de vesícula.