Logo no início de sua trajetória na Cardiologia, o médico Luciano Drager percebeu que os distúrbios do sono aumentavam o risco de doenças cardiovasculares. “Mas naquela época, quando eu fazia residência, os estudos nessa área estavam apenas começando”, ele conta. “E é curioso: apesar de passarmos de 1/3 a 1/4 da vida dormindo, tínhamos muitas dúvidas a respeito do sono. Porém, era nítido que distúrbios como insônia, privação do sono e apneia eram capazes de perturbar a saúde do coração. E não só ela. A obesidade, por exemplo, tem uma íntima relação com um sono de má qualidade”, aponta.
Esse é o tema central da entrevista que concedeu à jornalista Lúcia Helena de Oliveira, como parte da campanha #vamosfalarsobreobesidade, realizada pela Abeso, em parceria com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a World Obesity Federation.
Drager — para contar só um pouco de seu vasto currículo — acabou estudando a relação da hipertensão com os distúrbios do sono durante seu doutorado. E, mais tarde, fez um pós-doutorado na Johns Hopkins University, nos Estados Unidos, investigando as consequências cardiovasculares de noites maldormidas.
Hoje, além de ser o presidente da Associação Brasileira do Sono, é professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “A obesidade sempre permeia a apneia, a hipertensão e as doenças cardiovasculares”, diz ele, adiantando o assunto.
A apneia é o distúrbio do sono mais associado à obesidade?
LUCIANO DRAGER — Todos têm algum impacto de uma maneira ou de outra, mas a apneia do sono é, sem dúvida, uma espécie de carro-chefe. Vários estudos já demonstraram que, se você ganha pelo menos 10% de peso, você aumenta o risco de apresentar uma apneia significativa em pelo menos 30%. Em contrapartida, se você perde parte do excesso de peso, você melhora a sua apneia.
Por que isso?
LUCIANO DRAGER — Há uma íntima relação dos depósitos de gordura na região do pescoço com a obstrução da passagem de ar durante o sono. E até mesmo a gordura visceral favorece essa oclusão indiretamente. À noite, quando você se deita, o volume abdominal avantajado faz com que os pulmões fiquem menores, comprimidos, porque a gordura os empurra para cima. E os pulmões normalmente funcionam feito um pêndulo, tracionando a traqueia, como se a esticassem, Portanto, se eles são empurrados para o alto, a traqueia deixa de ser tracionada, o que ajuda a fechar a passagem do ar. E daí a lógica do que encontramos na prática: quanto maior o grau de obesidade, maior a prevalência e a gravidade da apneia. Fácil deduzir que o tratamento desse distúrbio do sono passa pela perda de peso e pelo controle da obesidade.
Quando diz que outros distúrbios também teriam alguma relação com a obesidade, ao que se refere?
LUCIANO DRAGER — Está bastante claro que a obesidade é capaz de levar a um sono de baixa qualidade, afetar a quantidade de horas dormidas, provocar insônia e até mesmo privação de sono. E nem sempre esses quadros têm a ver só com apneia.
A recíproca seria verdadeira, isto é, o sono de baixa qualidade poderia interferir no controle do peso?
LUCIANO DRAGER — O caminho entre o sono e a obesidade é de mão dupla, principalmente quando pensamos em quem dorme pouco ou tem insônia. Vários trabalhos mostram alterações de hormônios responsáveis pela saciedade quando há privação do sono. E isso, por sua vez, pode melhorar quando a pessoa passa a dormir melhor. É razoável pensar que alguém terá mais controle sobre a ingesta só por zelar pelo repouso noturno. Existem também fatores comportamentais. As noites insones são oportunidades para a pessoa comer, em um período em que o organismo humano foi programado para o jejum e que, consequentemente, tem baixo consumo energético. Não estou me referindo apenas àquele paciente que, por algum transtorno, ataca toda a geladeira durante a madrugada. Pode ser um simples beliscar, porque essa pessoa encontra na busca por alimento uma forma de passar o tempo e diminuir a ansiedade por ficar parte da noite em claro. Essa mania de beliscar durante a insônia já poderia atrapalhar o seu balanço energético.
E raramente a pessoa acorda e belisca algo mais leve…
LUCIANO DRAGER — Verdade. E isso tem razões hormonais. Existem estudos bem elegantes demonstrando que a pessoa com insônia acaba preferindo alimentos que trazem mais conforto e sensação de recompensa, como se eles pudessem contrabalançar o seu cansaço. E geralmente os alimentos que geram esse prazer no cérebro são os mais calóricos. A pessoa que convive com a insônia por um período mais prolongado acaba ganhando peso. Inclusive por mais um detalhe: cansada no dia seguinte, ela não tem tanta disposição para fazer uma atividade física. Então, retomando, temos uma combinação de hormônios da saciedade alterados, busca por alimentos calóricos, ingesta de alimentos ricos em açúcar e gordura em um período no qual o organismo gasta menos energia e uma predisposição ao comportamento sedentário.
Quem tem obesidade e, também, diabetes corre um risco ainda maior de distúrbios do sono?
LUCIANO DRAGER — O diabetes descontrolado, por vários motivos, por si só costuma atrapalhar o sono. Por exemplo, a pessoa tende a urinar muitas vezes durante a madrugada, como um mecanismo compensatório para o organismo se livrar do excesso de glicose na corrente sanguínea. Isso, claro, faz com que ela desperte várias vezes no meio da noite. O sono fica, então, todo fragmentado. E nem todo mundo consegue se levantar, ir ao banheiro e voltar a adormecer rapidamente depois, como se nada tive acontecido. Muitos relatam dificuldade para pegar no sono outra vez. No mínimo, acordar para urinar é um gatilho para a insônia, que levará ao ganho do peso e dificultará ainda mais o controle do diabetes. Está feito um círculo nada virtuoso. Para o sono, ter diabetes e obesidade, juntos, parece ser pior.
Como o senhor vê a abordagem da obesidade quando a pessoa procura um especialista para tratar um distúrbios do sono?
LUCIANO DRAGER — Na prática, o que observo é uma inércia terapêutica muito grande. As pessoas com obesidade saem da consulta com recomendações precárias, um tanto óbvias, claramente ineficazes. Dizer “o senhor ou a senhora precisa perder peso para melhorar o seu sono e o seu diabetes” é repetir algo que esse paciente que foi atrás desse especialista já sabe. O indivíduo se vê no espelho todos os dias, sofre bullying nos mais diversos ambientes, sente no corpo algumas consequências da sobrecarga no peso. Mas, muitas vezes, em uma consulta rápida, o médico não consegue ensiná-lo a lidar com essa doença crônica, que é a obesidade, até controlá-la, sabendo que é um caminho árduo, longo e de muita resiliência. Deveria, então, encaminhá-lo ao endocrinologista. Por outro lado, em defesa dos profissionais da minha área, até há pouco tempo tínhamos poucas opções de tratamento. Isso muda agora com o surgimento de medicamentos eficazes para combater a obesidade.
Tratar a apneia ajudaria na perda de peso?
LUCIANO DRAGER —Essa é uma impressão equivocada que muitos têm. Devo esclarecer o seguinte: tratar a apneia, por si só, não leva à perda de peso. Nosso grupo no InCor (o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP) avaliou mais 3 mil pessoas, participantes de 25 estudos. A conclusão foi de que o tratamento da apneia com o CPAP, um aparelho que usamos durante o sono para impedir as interrupções de respiração, não promove perda de peso. Melhora, sim, a disposição e os sintomas desse distúrbio. Também diminui o risco cardiovascular. Mas não afeta a balança. Ou seja, isso significa que, além de tratar a apneia, nós precisamos oferecer estratégias eficazes para promover o emagrecimento no paciente com obesidade. Só assim iremos oferecer um tratamento mais completo para quem sofre desse distúrbio.
Quem trata a obesidade precisa avaliar como anda o sono de seus pacientes?
LUCIANO DRAGER —Na minha opinião, o sono deve estar na mira dos endocrinologistas que tratam a obesidade, bem como na cabeça dos cardiologistas e dos geriatras. Sabemos que os distúrbios do sono pioram muito o prognóstico de diversas doenças, sendo mais comuns no sexo masculino, com exceção da insônia, que é mais frequente nas mulheres. O endocrinologista precisa ter total consciência de que o paciente com obesidade sob seus cuidados está no grupo de maior risco para distúrbios do sono. Um problema é que, na consulta, ele provavelmente não trará essa queixa, achando que não tem cabimento falar do sono com o seu endócrino. Por isso, na minha opinião, o colega precisa ser proativo e perguntar quantas horas esse paciente dorme toda noite, se demora para adormecer, se sente que o seu sono é restaurador ou se acorda cansado, se alguém já notou se ele faz pausas na respiração enquanto dorme, se tem dificuldade de concentração ou de memória capazes de entregar noites maldormidas. Essas perguntas rápidas já ajudam em uma primeira triagem.
O que esse médico, que não é especialista em sono, poderia fazer?
LUCIANO DRAGER — Brinco nas minhas aulas e para os meus colegas, dizendo “vocês não têm um oncologista de confiança? Ou um cirurgião de confiança a quem encaminham alguns casos? Então, está na hora de terem um especialista em sono de confiança, para, se notarem que um de seus pacientes tem distúrbios nessa área, encaminharem o caso para que ele seja tratado apropriadamente.
Isso não costuma acontecer?
LUCIANO DRAGER — Infelizmente, muitos colegas vêm com soluções fáceis, prescrevendo um determinado remédio para insônia, por exemplo. Só que, muitas vezes, a pessoa tem uma apneia associada ou, quem sabe, um quadro de ansiedade ou uma depressão por trás da dificuldade para dormir. E outra: quando inicio um tratamento para insônia, eu preciso já pensar em quando vou tirá-lo. Mas, na prática, os profissionais ficam apenas repetindo receita e, daí, a cronicidade do quadro termina persistindo. É quando as pessoas falam dos medicamentos como se eles fossem os grandes culpados. Mas, na realidade, não é isso. Boa parte dos fármacos usados contra a insônia já deram boas provas de que funcionam. No entanto, eles funcionam quando são usados, de preferência, por curto prazo, com uma abordagem integrada desse distúrbio. Por isso é tão importante essa parceria entre o endocrinologista e o especialista em sono. *