Foi quando estava no quarto ano da faculdade de Medicina que tomou a decisão com firmeza inabalável: seria hepatologista e pronto! Atual presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH), o médico Carlos Terra lembra que essa escolha precoce ia um pouco contra as expectativas. “Estamos falando da virada de 1987 para 1988 e, naquela época, essa nem era considerada uma especialidade. Era um apêndice, vamos dizer assim, da gastroenterologia”, ele conta.
Mas foi bem nesse período que começou a frequentar, como aluno, a Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro. “Ali, tive o privilégio de ter como mestre um grande ícone da Hepatologia nacional, que foi o professor Thomaz de Figueiredo Mendes. Ele promovia muitos cursos na Santa Casa e um outro hepatologista notável, o doutor Carlos Sandoval Gonçalves, que era do Espírito Santo, costumava participar, falando muito de carcinoma hepatocelular, de doença alcoólica do fígado… Essa convivência com os dois foi me encantando.”
Desse modo, ao se graduar, fez residência em Clínica Médica, pós-graduação em Gastroenterologia e, a partir daí, dedicou sua vida profissional inteira aos cuidados com o fígado. “Eu me considero um hepatologista puro. Porque desde o princípio foquei nessa área, inclusive durante o meu doutorado na Espanha, no Hospital Clínic de Barcelona.” Acabou ficando por lá de 2003 a 2008.
De volta ao Brasil, retomou suas atividades como funcionário público concursado no Hospital Federal da Lagoa, na capital fluminense. Hoje, é também professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Também tenho muito orgulho do meu papel atual na SBH. Não vou dizer que ele seja o de comandar, porque a gente conta com um grupo de hematologistas no país que, embora muito pequeno, é de um nível excepcional. Já estou sendo ajudado por eles na minha gestão e, juntos, esperamos construir dois anos muito profícuos.”
E foi desse jeito, apaixonado pelas questões do fígado, que descreveu à jornalista Lúcia Helena de Oliveira seus laços com a obesidade na série de entrevistas para a campanha #vamosfalarsobreobesidade — realizada ao lado da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologista e Metabologia) e da World Obesity Federation.
Esteatose hepática, doença hepática gordurosa não alcoólica, doença hepática gordurosa alcoólica, doença esteatótica do fígado e outros nomes mais… Os hepatologistas parecem ‘“trocar de língua” o tempo todo. Como acha que devemos nos referir a essa condição, que tem tudo a ver com a obesidade?
CARLOS TERRA — De fato, houve muita mudança de proposta de nomenclatura em um período curto e recente. O que, cá entre nós, serviu bastante para confundir as pessoas. Hoje, a questão ainda não está completamente resolvida entre os cientistas. Em função de algumas características dessa doença, quando a gente vai mencioná-la em algum artigo ou evento científico, é preciso um certo rigor. Mas, na minha opinião, quando nós vamos nos comunicar com os pacientes e o público leigo em geral, o melhor seria evitar confundir muito, para fazê-los entender perfeitamente o que está acontecendo e o potencial risco do problema. O objetivo é que eles, junto com o médico, consigam elaborar a melhor maneira de enfrentar a doença no fígado. Eu reconheço que, no âmbito científico, precisamos de maior rigor, por isso a nomenclatura tem sido tão discutida, para que não deixem de se considerar portador da doença aqueles pacientes que possam ter outras características.
Pode dar um exemplo?
CARLOS TERRA — Em um primeiro momento, para que o paciente fosse classificado como portador de doença gordurosa do fígado era obrigatório que ele não tivesse consumo superior a um determinado número de doses de álcool semanalmente. Isso caiu. Hoje se reconhece que um indivíduo pode ter as duas enfermidades concomitantemente, ou seja, ele pode ser portador de uma doença metabólica que leva à gordura no fígado e ele também pode ser portador da doença alcoólica do fígado, se beber uma quantidade mais alta de álcool toda semana. Do ponto de vista científico, é importante então chegarmos a um nome que expresse uma definição clara, que englobe todas as possibilidades e bem aceita universalmente.
Mas o senhor dizia que, para os leigos, deveríamos evitar confusão. Pelo menos enquanto o consenso sobre o nome não chega, como os médicos e outros profissionais de saúde deveriam se referir ao problema com seus pacientes?
CARLOS TERRA —Podemos falar em doença gordurosa no fígado ou doença hepática gordurosa metabólica simplesmente.
A pessoa com essa doença seria aquela com mais de 5% de gordura no fígado?
CARLOS TERRA —Essa é uma definição que existe. O complicado é que, então, para chegarmos a um diagnóstico, teríamos de fazer a biópsia do fígado, ou seja, a retirada de um fragmento por meio de uma punção para ver o percentual de gordura ali e estimar que ele represente o que acontece no órgão como um todo. Mas, de novo, não acho que, falando para um público leigo, essa questão dos 5% de gordura seja assim tão relevante. Até porque não há nenhuma proposta de estabelecer o diagnóstico da doença gordurosa do fígado baseado na biópsia. Ela é um procedimento que pode ser muito importante em algumas situações, mas não funcionaria como método de diagnóstico. Ora, seria inviável que todos os pacientes passassem por biópsia. Uma ideia dessas causaria um problema maior do que a solução.
Seja como for, todo profissional de saúde que trata de uma pessoa com obesidade deveria estar atento à condição do seu fígado?
CARLOS TERRA —Sem dúvida alguma. Esse é um paciente complexo, com muitas comorbidades e que, portanto, deve ser abordado de maneira holística. Mas o fígado deve ser olhando com atenção ainda mais especial, uma vez que a prevalência da doença gordurosa hepática na pessoa com obesidade é muitíssimo elevada. Sobretudo se ela tem também diabetes, o que não é incomum que aconteça. A obesidade e o diabetes, ainda mais quando associados, são as duas patologias que mais encontramos em quem apresenta gordura hepática. E, afinal de contas, uma parcela desses pacientes tem alto potencial de desenvolver uma doença grave no fígado.
Qual seria essa parcela?
CARLOS TERRA —Estima-se que em torno de uns 30%. 40% dos indivíduos com doença gordurosa no fígado chegarão a desenvolver um tipo específico de hepatite, causado pela presença da gordura. Ela, por sua vez favoreceria um ambiente nesse órgão que dispararia uma atividade inflamatória. É o quadro que conhecemos como esteato-hepatite.
E a esteado-hepatite poderia levar à cirrose ou ao câncer?
CARLOS TERRA —Ela, na verdade, é o principal preditor de ocorrência de fibrose, que seria resultado de um processo de reparação tecidual. Ou seja, a pessoa tem um tecido hepático sofrendo de inflamação e fazendo seguidos processos de cicatrização. Essa cicatriz seria a fibrose.
Qual o problema de o fígado ter fibroses?
CARLOS TERRA —Na medida em que as fibroses se acumulam no órgão, a gente vai trocando as células sãs— que são os hepatócitos, no caso — por um tecido sem qualquer função e que vai desarranjando a arquitetura habitual do fígado. O extremo disso é a cirrose. Ela seria um grau muito avançado de fibrose. Portanto, quando a pessoa apresenta fibroses, isso indica que ela tem probabilidade de sofrer todas as complicações da cirrose. E uma delas seria o câncer de fígado.
Se não dá para sair pedindo biópsia para todo mundo, qual seria, então, o exame que o médico recebendo uma pessoa com obesidade deveria pedir para avaliar a saúde do fígado?
CARLOS TERRA —Via de regra — para a imensa maioria dos pacientes e das doenças — a proposta diagnóstica parte da análise de todo um contexto. Se a gente se fixar em um único método diagnóstico, a probabilidade de equívocos cresce. Raramente uma única informação dá para o médico tudo o que ele precisa saber sobre aquele paciente. Nas pessoas com obesidade, porém, os métodos de imagem são de suma importância. É verdade que, para grandes obesos, a ultrassonografia pode ser de operação mais laboriosa, vamos dizer assim. Aliás, o médico que avaliar esse exame precisará saber disso na hora de interpretá-lo. Mesmo assim, a ultrassonografia acaba sendo o primeiro exame que a gente faz na busca do diagnóstico da doença hepática gordurosa. A ressonância magnética seria o método mais sensível, mas tem menor aplicabilidade, por ser mais cara.
E a elastrografia?
CARLOS TERRA — Ela é sensacional. A principal informação que fornece não é a do diagnóstico da doença propriamente dito, mas sobre em qual estágio ela se encontra. É um paciente que já tem fibrose ou ainda não? Ela já tem cirrose? São respostas que a elastrografia nos ajuda a encontrar. E, além da elastrografia, nós dispomos de alguns escores que são calculados a partir de variáveis bioquímicas.
Qual o papel desses escores?
CARLOS TERRA — Na saúde pública e como uma primeira forma de rastreamento, ele pode ser enorme. Nesses escores, a gente usa os valores de algumas enzimas hepáticas de plaquetas dosadas em exames laboratoriais e idade do paciente, por exemplo, fazendo um cálculo que nos auxilia a suspeitar da doença hepática gordurosa e da presença de fibrose, sobretudo. Os escores são mais uma ferramenta que podemos usar na atenção básica de saúde, quando não conseguimos disponibilizar, por exemplo, uma elastografia, que é um aparelho de investimento mais alto. Será difícil implantar eletrografia nas unidades básicas de saúde do Brasil inteiro. Mas um escore desses — que é simples de fazer, tendo em mãos um hemograma e sabendo a idade do paciente — permite que a gente, mais ou menos, vá rastreando a doença hepática gordurosa na população.
O paciente que já tem fibrose deveria ser encaminhado ao hepatologista?
CARLOS TERRA —Sim, quando descobrimos que um paciente tem fibrose, ele idealmente deveria ser encaminhado ao hepatologista. Mas acho pertinente que toda essa avaliação sobre a qual conversamos seja feita, antes, por clínicos de outras especialidades. Isso não significa uma troca, na linha ‘o senhor deixa de ser tratado por mim, que sou endocrinologista, e vai para o consultório do hepatologista ali do lado’, por exemplo. Os melhores resultados são obtidos quando o seu acompanhamento é feito de forma multidisciplinar. Porque estamos diante de doenças sistêmicas, que envolvem muitos órgãos. É necessário que cada especialista dê a visão de seu ângulo para enxergar o paciente como um todo, como ele, aliás, merece.
Como é o manejo quando o hepatologista atende um paciente com fibroses no fígado?
CARLOS TERRA —Do ponto de vista terapêutico, as coisas não andam na velocidade que a gente gostaria, embora avancem pouco a pouco. Uma coisa que está bem estabelecida é que a obesidade não é um problema do sujeito glutão, sem disciplina para comer. Essa imagem é antiga demais! Sabemos, agora, que existem fatores ambientais e comportamentais, mas sobretudo fatores genéticos. Em cima disso, ao lado de colegas endocrinologistas, devemos cogitar abordagens medicamentosas para a perda de peso, que indiretamente ajudará a barrar a doença no fígado. Mas, claro, a equipe de saúde deve envolver o paciente em mudança de estilo de vida. Ela é e continuará sendo a pedra angular do seu tratamento. Já está bem demonstrado por estudos que a prática de atividade física, no caso de quem tem doença gordurosa, é muito importante para reduzir a inflamação no fígado, independentemente de o paciente perder peso de maneira mais significativa , que seria o ideal. O exercício físico regular já causa benefícios para o fígado. Se, ao lado dos treinos, ele consegue adotar um padrão alimentar capaz de restringir a ingesta de produtos ultraprocessados, será ainda melhor. E friso: preferencialmente, essas mudanças no estilo de vida devem ser orientadas por profissionais de Educação Física e nutrição.
Quando o senhor fala da importância do exercício físico, para o fígado seria melhor, o aeróbico ou o de resistência?
CARLOS TERRA —O ideal é que a gente associe as duas modalidades. Todos sabem que dar uma caminhada, pedalar, nadar são exemplos de atividades aeróbicas excelentes para a saúde. Mas os exercícios de força visando aumento da massa muscular também são essenciais, porque a participação de substâncias produzidas pelos músculos é algo importante para controlar os mecanismos fisiopatogênicos da obesidade. O paciente, ao conseguir um pouquinho de hipertrofia — sem querer ter a aparência de um fisioculturista, porque não é disso que estamos falando —, obtém benefícios claríssimos. Para o fígado, inclusive.
Se o fígado de quem tem obesidade corre mais risco de acumular gordura, essa pessoa deveria tomar ainda mais cuidado com o consumo de álcool?
CARLOS TERRA — Talvez eu seja um hepatologista mais flexível. O álcool é uma substância tóxica — e não só para o fígado. Entretanto, o mecanismo de lesão pelo álcool é dose-dependente. Portanto, quem toma uma champanhe no Natal não terá cirrose por causa do brinde. A nossa dificuldade é estabelecer o limite de consumo seguro de álcool para cada um no dia a dia, com ou sem obesidade. Isso não é nada simples. Óbvio que estou falando de pessoas saudáveis do ponto de vista do fígado, que ainda não apresentam problemas nesse órgão. A Organização Mundial de Saúde, por exemplo, propõe que o limite seria um consumo alcóolico inferior a 30 gramas de álcool por dia para os homens e inferior a 20 gramas por dia para as mulheres. Mas isso tampouco foi definido por estudos bem desenhados. Portanto, se a pessoa com obesidade já apresenta algum grau de fibrose, provavelmente esse limite será muito menor.
Para terminar, quando médico diagnostica doença hepática gordurosa em seu paciente com obesidade, isso indicaria que ele também um maior risco cardiovascular?
CARLOS TERRA — Essa relação é clara, demonstrada por inúmeros trabalhos. E o paciente precisa saber disso. A doença gordurosa no fígado, a obesidade, a doença cardiovascular e o diabetes estão interligados. Se tentarmos focar em apenas um desses males, provavelmente entregaremos um mau acompanhamento. Porque tratar em conjunto todos esses males é o que ira desatar o nó em sua saúde. *