23 de dezembro de 2022
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ENTREVISTA COM CINTIA CERCATO: um balanço das recentes conquistas

Baiana de fala mansa — na verdade, uma gaúcha criada em Salvador, mas quem se lembrará disso ao ouvi-la?  —, Cintia Cercato termina agora a sua segunda gestão como presidente Abeso. 

A primeira foi entre 2015 e 2016, tempos delicados para ela pessoalmente e, de certo modo, apesar dos avanços conquistados naquela época, para a própria associação também. 

Afinal, no primeiro ano desse período, todos perderam aquele que foi a voz das pessoas com obesidade no Brasil, batalhando com as armas da ciência pelo reconhecimento de que essa condição era na verdade uma doença  — o doutor Alfredo Halpern, um dos fundadores da Abeso e, talvez, a própria encarnação da razão de ser dessa entidade.

As histórias se cruzam. Ao se formar na tradicional Universidade Federal da Bahia, onde ainda em 1808 foi criada a primeira escola de Medicina do país, Cintia Cercato fez as malas para cursar a residência em  Clínica Médica e, depois, mergulhar mais dois anos em Endocrinologia na Universidade de São Paulo.

Logo após esses quatro anos de estudos, ela passou a integrar o Grupo de Obesidade do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina dessa mesma universidade, onde fez seu doutorado.

Ali, nas palavras dela, teve  “a oportunidade de pesquisar e aprender muito, com o privilégio de ser aluna do Alfredo Halpern, que sem dúvida foi a pessoa mais importante que tivemos para dignificar o olhar sobre a doença”. 

Nessa etapa, as paixões se misturaram. Tornaram-se indissolúveis. O professor que inspirou tanto a sua vida profissional acabou se tornando seu marido. Do casamento, nasceu uma filha, Mariana. Da parceria profissional, por sua vez, surgiu uma outra família no coração da doutora, que é a da Abeso.

A seguir, ela faz um balanço muito objetivo dos últimos dois anos sob sua batuta — mas não sem muita emoção escondida nas entrelinhas.

ABESO —  Dra. Cintia, você também esteve à frente da Abeso como presidente no biênio 2015-1016. Algo mudou de lá para cá? E quais foram os maiores desafios desta vez?

CINTIA CERCATO — Mudou muito. A Abeso vem crescendo e tendo uma projeção importante perante a sociedade em todos os temas relacionados à obesidade. 

O grande desafio foi conseguir estruturá-la para dar conta de atender e aproveitar tantas oportunidades. Sem falar que iniciamos a gestão em plena pandemia, quando ainda existia uma série de restrições. Tivemos, claro, que nos adaptar a essa nova realidade, tendo pela primeira vez realizado um congresso totalmente on-line, que acabou sendo um grande sucesso

Neste último biênio de 2021-2022, eu diria que foi uma gestão mais compartilhada, que buscou envolver mais os departamentos. E, assim, conseguimos realizar mais ações nas áreas de atividade física, prevenção, cirurgia bariátrica e nutrição. Por exemplo, publicamos um importante posicionamento sobre o tratamento nutricional do sobrepeso e da obesidade.

ABESO —  Houve uma aproximação ainda maior do governo nestes últimos dois anos. Poderia resumir as principais iniciativas nesse sentido?

CINTIA CERCATO — Construímos ao longo desses mais de 35 anos da Abeso uma grande credibilidade. Isso fez com que passássemos a ser convidados pelo próprio governo para discutir a pauta da obesidade. Temos participado da validação de materiais e fomos uma das poucas sociedades médicas chamadas para assinar o termo nacional para deter o avanço da obesidade infantil, coordenado pelo Ministério da Saúde. 

Nesta gestão, sentimos a necessidade de ter uma assessoria de advocacy e, com isso, avançamos ainda mais nas relações governamentais. Estamos discutindo políticas públicas para a criação de um ambiente mais saudável para a prevenção do ganho de peso, um protocolo de tratamento no SUS visando acesso, além de ações junto à Anvisa para combater a má prática médica, buscando sempre a segurança e um atendimento ético para as pessoas com obesidade.

ABESO —  Hoje, quais seriam os maiores desafios de uma associação como a Abeso no combate à obesidade, se pudesse eleger dois ou três deles, e por quê?

CINTIA CERCATO — O estigma é um desafio global. As pessoas com obesidade ainda sofrem muito preconceito e são responsabilizadas pela sua doença. Fizemos a pesquisa sobre gordofobia e os resultados mostram que é urgente cuidar dessa temática.  Temos trabalhado intensamente para conscientizar que a obesidade é uma doença complexa. E também queremos estar mais próximos das pessoas que têm essa condição. 

A propósito, demos os primeiros passos em um projeto (por enquanto, é apenas um projeto) para dar voz a essas pessoas dentro da Abeso. Ao mesmo tempo, estamos discutindo esse tema na esfera governamental para proteger quem tem obesidade.

Outro imenso desafio é o acesso a tratamento. Infelizmente, não temos nenhum tratamento para obesidade no SUS. O PCDT de obesidade precisa ser muito melhorado. Fizemos reuniões e enviamos sugestões para os setores envolvidos na linha de cuidado de pessoas com essa doença tanto na atenção primária quanto na especializada. Esse é um caminho ainda muito longo, sendo pauta recorrente na Abeso.

ABESO —  Também houve um esforço notável para alinhar a Abeso com outras sociedades médicas, não é mesmo?

CINTIA CERCATO — A obesidade tem uma interface com diversas especialidades da Medicina. Em 2021, nossa campanha “Cuidar de Todas as Formas” publicou um manifesto que envolveu treze associações e sociedades médicas, chamando a atenção justamente para a seguinte verdade: todas as especialidades precisam ter um olhar para a pessoa com obesidade. 

Neste momento, estamos finalizando uma diretriz conjunta com a Sociedade Brasileira de Hepatologia sobre a doença hepática gordurosa não alcoolica em pessoas com obesidade. Também, diante da constatação de que a obesidade é um importante risco para a covid grave , que o excesso de peso afeta a imunidade e vacina é sempre uma ferramenta de proteção, nós nos aproximamos mais da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações) e estamos discutindo a importância de incluir obesidade no calendário de vacinação de grupos especiais.  Claro que ainda existe uma série de oportunidades com outras sociedades médicas e elas estão no planejamento futuro da Abeso.

ABESO —  Também se notou uma relação mais estreita com a World Obesity Federation (WOF) Poderia nos contar um pouco sobre isso?

CINTIA CERCATO — Somos o único membro pleno da WOF no Brasil, ou seja, o único que ocupa determinadas funções, que tem direito a voto e que pode concorrer para sediar o ICO, o International Congress on Obesity.

Soubemos aproveitar bem esse espaço. Por exemplo, conseguimos apoio financeiro para a campanha do Dia Mundial da Obesidade de 2021 e que, pelo sucesso, mereceu destaque nas comunicações da WOF.

Além disso, assinamos o documento com um plano de ação e recomendações para deter o crescimento da obesidade, que foi endereçado à Organização Mundial da Saúde e apresentado na 75ª Assembleia Mundial de Saúde. O resultado foi bastante positivo, com muitas dessas recomendações sendo incluídas no Plano de Ação Global da OMS para a prevenção e o controle de doenças crônicas não transmissíveis. 

E foi toda essa aproximação que nos proporcionou a confiança por parte da WOF  para sediar o ICO 2024. Será uma oportunidade para os profissionais brasileiros participarem desse evento de enorme relevância internacional. Nas nossas tratativas, aliás, pedimos a garantia de um preço mais acessível aos profissionais da América Latina. O evento acontecerá em São Paulo, no mês de junho de 2024.

ABESO —  Você sempre foi defensora de campanhas e projetos de comunicação para a conscientização de profissionais de saúde e do público leigo. Considera isso uma das características de sua gestão?

CINTIA CERCATO — Com certeza. tivemos a oportunidade de fazer muitas campanhas direcionadas à população. As campanhas do Dia Mundial da Obesidade conseguiram atingir milhares de pessoas. Em 2021, com o tema “Cuidar de todas as formas” e, em 2022, falando de “Obesidade: conhecimento, cuidado e respeito”, trabalhamos nossos maiores desafios, que são o estigma e o acesso a uma abordagem adequada e digna.

Tivemos, ainda, mais duas campanhas. Uma delas, “Comer bem, sim!” buscou chamar a atenção para o nosso posicionamento sobre taxação de bebidas açucaradas e outro sobre a proibição de marketing de alimentos ultraprocessados voltados ao público infantil , com o objetivo de promover um ambiente mais saudável. E fizemos a campanha “Escola em Movimento” para valorizar as aulas de Educação Física na escola e incentivar uma vida mais ativa para crianças e adolescentes.

ABESO —  Por falar em marca, qual seria a da sua gestão ou a que gostaria de ter deixado?

CINTIA CERCATO — A marca do dinamismo. Acho que conseguimos fazer muitas coisas em tão pouco tempo. Isso exigiu bastante dedicação, a escolha de um time certo, despertando em todos a vontade de participar mais e permitindo maior autonomia aos departamentos. Termino a gestão muito contente com os resultados obtidos.

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