18 de abril de 2023
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“Ozempic não é cosmético”: quando remédios contra diabetes ou obesidade são realmente indicados

Foto: Getty Images – A semaglutida promove uma perda de 17% do peso corporal, em média

Nos últimos meses, uma “canetinha” com agulha na ponta virou uma febre entre as pessoas que desejam emagrecer.

Em postagens de redes sociais, celebridades e influenciadores digitais do Brasil e do mundo passaram a divulgar o Ozempic, remédio desenvolvido pela farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk.

A princípio, a semaglutida — o nome científico da molécula — foi estudada e aprovada como um tratamento contra o diabetes. Mas logo os cientistas começaram a observar um “efeito colateral” muito interessante dela: a perda de peso.

Foi assim que o Ozempic começou a ter o chamado uso off-label (fora das recomendações de bula) alardeado por algumas pessoas como uma forma de eliminar os quilos extras.

Mais recentemente, surgiram as versões do medicamento específicas para o tratamento da obesidade — elas foram aprovadas no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro e devem chegar às farmácias do país a partir do segundo semestre deste ano.

Mas, afinal, para quem a semaglutida está realmente indicada? E quem mais se beneficia dessa e de outras terapias farmacológicas contra o excesso de peso?

Segundo médicos ouvidos pela BBC News Brasil, esse remédio simboliza o início de uma “era de ouro” no tratamento da obesidade — mas o uso indiscriminado dele para fins estéticos, sem orientação médica, preocupa.

A BBC News Brasil entrou em contato com a farmacêutica Novo Nordisk, responsável por liraglutida e semaglutida, que enviou uma nota de esclarecimentos sobre várias questões relacionadas ao uso desses medicamentos.

No texto, o laboratório diz não endossar ou apoiar “a promoção de informações de caráter off-label de seus medicamentos, ou seja, em desacordo com a bula”.

“O Ozempic, aprovado e comercializado no Brasil para o tratamento do diabetes tipo 2, não possui indicação aprovada pelas agências regulatórias nacionais e internacionais para o tratamento de obesidade”, afirma.

“Com o intuito de evitar risco à saúde com a utilização de medicamentos ineficazes ou inapropriados, a Novo Nordisk recomenda que os pacientes adquiram os produtos em locais oficiais, atentando para as apresentações aprovadas pela Anvisa e o preço ofertado, regulado pelo Governo Federal”, esclarece a nota.

Sobre os episódios de falta do medicamento, a Novo Nordisk diz que não é possível rastrear a finalidade de uso da semaglutida comprada nas farmácias, mas entende e lamenta “a preocupação e possíveis transtornos que essa indisponibilidade temporária poderá causar em pacientes com diabetes 2, seus familiares e cuidadores”.

“Encaramos a situação de maneira extremamente séria e estamos trabalhando incansavelmente para superarmos esses desafios temporários”, conclui o texto.

Um remédio, três ações

A confusão relacionada a essa medicação começa pelo nome. Como dito anteriormente, a alcunha científica dela é semaglutida, a qual usaremos como padrão ao longo desta reportagem.

Mas os nomes com que ela é vendida nas farmácias variam segundo o objetivo terapêutico e a dosagem. O tratamento já aprovado há algum tempo contra o diabetes tipo 2 é o Ozempic. Ele é injetável e tem 1 miligrama (mg).

Uma segunda opção contra o diabetes é o Rybelsus, que vem na forma de comprimidos de 3,7 ou 14 mg.

Por fim, o medicamento específico contra a obesidade é chamado de Wegovy. Ele é injetável e traz 2,4 mg.

Ou seja: falamos de três produtos distintos, cuja semelhança é o fato de terem a semaglutida como princípio ativo.

Mas como essa molécula é capaz de reduzir o peso de uma pessoa? A médica Simone Van de Sande Lee, diretora do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), diz que ele produz três efeitos no organismo.

Isso porque a semaglutida “imita” a ação de um hormônio fabricado no intestino: o GLP-1.

“O principal mecanismo de ação desse remédio, que pertence à classe dos análogos de GLP-1, acontece no sistema nervoso central. Ele viaja pela corrente sanguínea e chega às regiões do cérebro que controlam a sensação de fome e o gasto de energia”, explica ela.

“E isso gera um sinal de saciedade ao resto do organismo, o que faz o indivíduo ter uma ingestão menor durante as refeições”, complementa a endocrinologista, que também é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O resultado prático disso é justamente o emagrecimento.

Outro efeito da semaglutida é o de estimular a liberação de insulina pelo pâncreas. Esse hormônio é responsável por retirar da circulação sanguínea o açúcar obtido dos alimentos e colocá-lo dentro das células, onde será usado como fonte de energia.

Por fim, o fármaco também retarda o esvaziamento do estômago — como a comida fica nesse órgão por um tempo maior, a sensação de barriga cheia acaba se prolongando.

Como explicado mais acima, a semaglutida para tratamento da obesidade é injetável (ela vem numa espécie de caneta, com uma agulha fina na ponta), e deve ser aplicada uma vez por semana.

Nos estudos que serviram de base para a aprovação do medicamento, a perda de peso média entre os voluntários foi de 17% — porcentagem que supera o obtido com outras opções farmacológicas disponíveis.

“As medicações que tínhamos até então chegavam, no máximo, a 10%”, estima o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso).

“Além disso, a semaglutida é bastante segura, com poucos efeitos colaterais conhecidos”, acrescenta.

Pelo que foi descrito até agora, os eventos adversos da terapia são classificados como transitórios, leves ou moderados, e acometem principalmente o sistema digestivo: os pacientes podem experimentar sensações de náuseas e enjoos, além de quadros de diarreia ou constipação.

Nas pesquisas, também foram observados poucos casos de pedras na vesícula e pancreatite — embora os números não tenham sido suficientemente grandes para alcançar uma relevância estatística.

Quando ela é indicada?

Para saber quem mais se beneficiaria do tratamento com a semaglutida, é preciso antes conhecer uma das medidas mais utilizadas para diagnosticar quadros de sobrepeso ou obesidade: o Índice de Massa Corporal, ou IMC.

Para chegar a esse número, basta dividir o peso de um indivíduo pela altura dele elevada ao quadrado. O número obtido a partir dessa operação matemática se encaixa em uma das categorias a seguir:

Menor que 18,5 – abaixo do peso normal

Entre 18,5 e 24,9 – peso normal

Entre 25 e 29,9 – sobrepeso

Entre 30 e 34,9 – obesidade grau 1

Entre 35 e 39,9 – obesidade grau 2

Acima de 40 – obesidade grau 3

Vale dizer que o IMC é apenas uma medida de referência, e nem sempre ele reflete de modo absoluto a saúde de uma pessoa ou as condições particulares de cada um — um atleta de alto rendimento muito forte, por exemplo, pode ter números que ficam acima do “peso normal”, mas mesmo assim ele não tem sobrepeso ou obesidade.

Em bula, a semaglutida está indicada para todos os indivíduos com obesidade (ou seja, com o IMC acima de 30).

Ela também pode ser considerada como uma opção para pacientes com sobrepeso cujo IMC supera os 27 e há a presença de alguma comorbidade (ou doença associada), como hipertensão, colesterol alto, diabetes, apneia do sono…

Em ambos os casos, a aplicação dela deve estar sempre associada com as mudanças no estilo de vida, que incluem dieta e atividade física regular.

Arsenal ampliado

“Historicamente, o tratamento da obesidade é cheio de decepções”, lembra Halpern.

No passado, foram aprovadas medicações que até funcionavam, mas traziam eventos adversos graves e potencialmente fatais.

Antes da chegada da semaglutida, os remédios disponíveis para regular o peso corporal eram poucos: a sibutramina, o orlistate, a liraglutida e alguns antidepressivos.

“Falamos de opções que são razoavelmente eficazes, com uma perda de peso que varia entre 5 e 10%”, estima o endocrinologista.

“Porém, na maioria das vezes, os pacientes precisam eliminar mais do que isso”, complementa.

“O avanço no conhecimento científico e o desenvolvimento de novos tratamentos permitem a gente viver essa era de ouro no tratamento da obesidade”, classifica o cirurgião Ricardo Cohen, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Segundo Cohen, a disponibilidade de tantas opções permite escolher melhor o tratamento para cada paciente, segundo as necessidades dele.

“Na próxima década, vamos conseguir individualizar cada vez mais os cuidados. Com o avanço da genética, inclusive, saberemos de antemão se uma pessoa com obesidade vai se beneficiar mais de um medicamento ou da cirurgia bariátrica”, antevê o médico.

Nesse contexto, os remédios mais antigos continuarão a ter valor. Isso porque nem todo mundo responde bem à semaglutida.

De acordo com os especialistas, os antidepressivos também seguirão valiosos para os casos em que o ato de comer envolve compulsões e questões emocionais.

Cohen ainda aponta que a cirurgia bariátrica seguirá como uma alternativa importante, especialmente para os casos mais graves (quando o IMC supera os 35 ou os 40) ou para os indivíduos que não respondem às medicações.

Os novos pilares terapêuticos

O endocrinologista Walmir Coutinho, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), observa que tantos avanços científicos modificaram até a ordem de prioridade dos tratamentos contra a obesidade.

Tradicionalmente, as sociedades médicas costumavam prescrever mudanças na dieta e prática de exercícios físicos como a primeira linha terapêutica para lidar com o excesso de peso. Só quando essas estratégias falhavam é que remédios ou procedimentos cirúrgicos entravam em cena.

Mas isso começou a ser questionado com mais força em meados de 2020, com a publicação das Diretrizes de Tratamento de Obesidade do Canadá.

Coutinho destaca que, pela primeira vez, um documento desse porte reconheceu que intervenções psicológicas, medicações e cirurgia bariátrica formam os três pilares terapêuticos básicos — e modificações na alimentação e estímulo à atividade física atuam como forças complementares para a perda de peso.

“A ciência já comprovou que dieta e exercício físico até funcionam bem no curto e no médio prazo, mas perdem a eficácia com o passar do tempo”, cita Coutinho, que também é ex-presidente da Federação Mundial de Obesidade.

Para justificar isso, o endocrinologista cita os resultados de um estudo chamado Action IO, que aconteceu em 11 países e foi publicado em 2019.

Na pesquisa, a meta era perder até 10% de peso em três anos com mudanças no estilo de vida. Ao final do experimento, 84% dos participantes não conseguiram, 11% até enxugaram as medidas, mas recuperaram depois, e apenas 5% atingiram o objetivo estabelecido.

“Já sabemos, com um alto grau de segurança, que dieta e exercício não são a solução definitiva para o tratamento da obesidade. Falamos de uma doença crônica que, assim como o diabetes, o colesterol alto e a hipertensão, na maioria das vezes vai precisar sim de medicamentos”, defende Coutinho.

Embora entrar com os remédios logo de cara ainda não seja um consenso no Brasil, Halpern aponta que muitas vezes eles são prescritos porque o indivíduo com obesidade costuma passar por uma verdadeira jornada antes de buscar um médico.

“Em primeiro lugar, precisamos deixar claro que mudanças no estilo de vida devem sempre estar presentes”, esclarece o médico.

“Mas algumas estimativas apontam que o paciente demora cerca seis anos para consultar um especialista. Com isso, muitas vezes já é preciso iniciar com a medicação”, complementa.

Porém, apesar de todos os benefícios observados nos últimos anos, as terapias medicamentosas contra o excesso de peso esbarram em pelo menos três grandes obstáculos para deslanchar, como você confere a seguir.

Preconceitos que não vão embora

“Infelizmente, a obesidade segue cercada de estigmas”, lamenta Cohen.

“Para muitos, esse problema ainda é visto como uma falha de caráter ou falta de vontade, como se a pessoa só não emagrecesse porque não se esforça ou não quer”, observa o cirurgião.

“Não se pode jogar a culpa da obesidade nos pacientes. Falamos de uma doença crônica progressiva que necessita de intervenção, como qualquer outra enfermidade”, afirma ele.

Ou seja: pelo que se sabe hoje em dia, a obesidade não é apenas uma questão de comer demais ou gastar poucas calorias. Trata-se de uma disfunção metabólica muito complexa, sobre a qual há uma influência de fatores genéticos e de estilo de vida.

Essa noção distorcida sobre o que é obesidade e o que pode ser feito para combatê-la constitui, portanto, a primeira barreira na busca de uma solução para o problema.

Coutinho estima que, nos Estados Unidos, apenas 0,8% dos indivíduos que poderiam se beneficiar dos remédios estão fazendo o tratamento — no Brasil, um estudo antigo calculou que 3,3% dos pacientes com obesidade usavam a sibutramina.

“Temos então cerca de 97% da população que sofre de uma doença grave e mortal que simplesmente não toma nenhum medicamento”, calcula.

O endocrinologista destaca que, segundo organizações internacionais e levantamentos recentes, todos os anos são registradas 4 milhões de mortes associadas ao sobrepeso e à obesidade.

E a tendência é que esses números só cresçam no futuro. “No Brasil, 55% da população está acima do peso, número que deve subir para 88% até 2060”, projeta Coutinho.

“Em 2020, a obesidade custou R$ 190,5 bilhões ao país. Esse valor vai saltar para R$ 1,3 trilhão em quatro décadas”, complementa.

Usos estéticos inadequados

A segunda barreira citada pelos especialistas é justamente a banalização dos remédios mais novos, principalmente da semaglutida.

Como citado no início da reportagem, ela virou uma moda nas redes sociais — e muita gente passou a utilizá-la por conta própria.

“Esse medicamento tem a tarja vermelha, o que significa que a venda dele depende de prescrição médica”, conta Lee.

“Mas, como a retenção da receita pela farmácia não é obrigatória, na prática muita gente consegue comprar a semaglutida mesmo sem ter o pedido de um profissional de saúde”, aponta a endocrinologista.

Coutinho lembra que a semaglutida “não é cosmético” e será necessário desenvolver maneiras de inibir esse uso supérfluo.

“Tomar a medicação com fins estéticos é preocupante, porque isso gera um desbalanço na relação risco-benefício”, ressalta.

Ou seja, a pessoa que toma a injeção sem necessidade terá uma perda mínima, de poucos quilos, e ainda sofrerá com os efeitos colaterais — ainda mais se o uso é feito por conta própria, sem a orientação do médico, que busca justamente aumentar a dosagem aos poucos para observar as reações e lidar com possíveis incômodos.

“A semaglutida não é uma droga para você perder três quilos e usar uma roupa no casamento de um amigo no final de semana”, orienta Cohen.

Halpern aponta que a forma como o medicamento é retratado na mídia e nas redes sociais contribui para essa noção distorcida.

“Precisamos entender de uma vez por todas que não estamos falando de remédios para emagrecer. Eles são tratamentos contra uma doença”, diferencia.

O endocrinologista acrescenta que esse uso estético também afeta os pacientes que realmente se beneficiariam do fármaco — nos EUA, por exemplo, foram registrados episódios de falta de doses em farmácias pela alta procura dos últimos meses.

Preço salgado

Para fechar, não dá pra ignorar as discussões sobre o acesso aos remédios antiobesidade.

Por ora, nenhum deles está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) — existe até um pedido de análise para a inclusão da liraglutida, uma molécula de uso diário que é “prima-irmã” da semaglutida, na rede pública.

Isso significa que, até o momento, os pacientes precisam pagar por conta própria pelo tratamento — ou, caso tenham convênio, ver a possibilidade de o plano de saúde custear essa compra.

Ainda não se sabe qual será o preço cobrado pela semaglutida contra a obesidade (o Wegovy) no Brasil.

Nas farmácias, a versão injetável do medicamento que trata especificamente o diabetes (o Ozempic) sai na casa de R$ 800,00 a R$ 1.100,00 ao mês.

“Ou seja, falamos de um remédio que ainda é extremamente caro para a maior parte da população brasileira”, constata Halpern.

E isso se torna ainda mais significativo quando consideramos o fato de que o tratamento contra a obesidade é contínuo, sem data para terminar.

Essa necessidade de seguir a terapia de forma indefinida, aliás, não tem nada de novo. Ela também acontece em outras doenças crônicas muito comuns, como o diabetes e a hipertensão, em que o paciente precisa tomar os remédios na periodicidade indicada para manter a pressão arterial ou o açúcar no sangue sob controle.

“Esses medicamentos não vão modificar de forma definitiva as alterações que a obesidade provoca no organismo”, explica Lee.

“Na maioria dos casos, a tendência é que a pessoa ganhe peso novamente se o tratamento for interrompido”, complementa a endocrinologista.

Acesse o link do portal da BBC: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn064lnzd62o

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