06 de março de 2023
  • compartilhar:

JÚLIA SIPOLATTI: o esporte além de um padrão de corpo

No evento de crossfit de sua cidade, Vila Velha, no Espírito Santo, o cartaz imponente na entrada anunciava: “Só os melhores estão aqui”.  E a imagem, para confirmar o alto nível da competição, era a da atleta Júlia Sipolatti, de 26 anos. A cara da moça, ao chegar ao local e ver o seu retrato gigante, era pura emoção.

Quem conhece a sua trajetória entende o motivo. Ela abre a série “Um outro olhar para a obesidade”, com perfis de pessoas vivendo com excesso de peso que desmistificam o senso comum, comentados posteriormente por especialistas do setor e pelo doutor Bruno Halpern.

No caso de Júlia, o amor pelos esportes é antigo. A sensação de ser realmente valorizada, porém, é muito mais recente. Afinal, nem sempre foi assim. Ao contrário.

Quando era adolescente, Júlia esperava ansiosa por uma única semana do ano: a dos jogos internos da escola na qual estudava na mesma cidade capixaba.

“Sempre fui uma criança gorda, mas ativa”, conta. “Eu me destacava demais nos esportes e, por isso, a semana da competição era uma alegria para mim: o momento em que eu era querida pelos colegas, todo mundo queria fazer parte do meu time. Dentro da quadra, era respeitada por ser uma menina grande e habilidosa. Já no resto do ano, eu sofria bullying.”

Ela se lembra de, um dia, chegar em casa chorando e desabafar com a mãe: “Eu não sabia mais o que fazer para me livrar dos vários apelidos horríveis que ganhava na sala de aula.”

Claro, na escola ela também encontrou quem a acolhesse. Mesmo assim, a menina Júlia foi se tornando cada vez mais fechada, deixando de lado as atividades esportivas, inclusive. “Ficava mais em casa, só lendo”, relembra.

Ao entrar na faculdade de Veterinária, até cogitou voltar a praticar alguma modalidade no ambiente universitário. “Mas ouvia comentários dos colegas sobre o meu corpo e isso, na ocasião, me desencorajou completamente”, diz. Nem arriscou.

Por sorte, sem pensar muito, em determinado dia aceitou o convite de um conhecido, que é treinador de crossfit, para conhecer o “box”, que é como, nessa modalidade, chamam o lugar onde acontecem os treinos. Ele insistia que Júlia iria gostar. Ela não tinha a menor expectativa. Mas, tudo bem, foi.

“No instante em que cheguei com a minha irmã e vi todas aquelas pessoas super fortes e magras, disse que não entraria ali de jeito algum”, conta. Mas acabou cedendo. Entrou — e que bom que fez isso! Foi o início de uma nova fase, que ela própria define como “maravilhosa”.

O JEITO DE OLHAR PARA O PRÓPRIO CORPO

Ao contrário do que fantasiou, Júlia foi bem recebida por todos os alunos. Alguns se tornaram seus grandes amigos e incentivadores.

Já são três anos praticando crossfit e Júlia não pensa em parar – pelo contrário, participa de competições e quer continuar evoluindo. “Hoje, não durmo e acordo pensando: ‘sou gorda, como vou emagrecer?’. Esse pensamento, que me acompanhou durante boa parte da vida, passou.”

Agora, seu foco é melhorar a aptidão física, ficar ainda mais forte e ágil. “O crossfit desabrochou uma nova Júlia”, observa. “Ele mudou meu corpo, me dando força e disposição. Acima de tudo, mudou a maneira como eu penso sobre ele.”

Nos tempos de estagiária de Veterinária — ela acabou largando o curso para trabalhar em um confecção—, tinha muita dificuldade para se agachar e tirar os animais das gaiolas, por exemplo. “Minhas calças rasgavam quando  eu fazia isso. E, principalmente, eu não tinha nenhuma mobilidade”, diz. 

Agora, compartilha sua rotina de treinos com mais 24 mil seguidores no Instagram, inspirados por suas imagens fazendo agachamentos, sim, ao mesmo tempo em que  ergue barras com dezenas de quilos em uma altura acima de sua cabeça.

“Todos os dias recebo mensagens de gente que encontrou coragem para praticar algum exercício ou esporte depois que me viu”, conta. “Claro que recebo críticas também. Mas quer saber? No final das contas, elas até geram engajamento”, ri, tirando de letra a maldade alheia.

UM OLHAR ACOLHEDOR PARA A SAÚDE

Treinando crossfit várias vezes por semana, Júlia procurou uma nutricionista que pudesse indicar uma dieta adequada para a prática intensa do esporte.

“Eu me senti acolhida por essa profissional por um detalhe interessante: ela não foi logo perguntando quantos quilos eu queria perder, nem estipulou que esse seria o objetivo”, explica. “Em vez disso, questionou sobre as atividades que eu gostaria de fazer no futuro e que, por enquanto, ainda não conseguia.”

Incentivada, Júlia colocou como meta andar a cavalo, algo que ainda não tentou. “Tem uma questão que vai além do peso físico e ela é mental”, explica. “Eu já tinha colocado na cabeça que cavalgar não era para mim. Agora, porém, estou confiante de que, um dia, farei isso.”

Antes de encontrar uma profissional de saúde com a qual se sentiu à vontade e fez planos, a atleta revela que sentiu na pele a dor da gordofobia em diversos consultórios: “Posso ironizar que eu peguei ‘trauma de médico’. Eu não queria tratar qualquer tipo de problema porque sabia que o médico ficaria só repetindo que eu tinha que emagrecer.”

Aliás, espantoso foi ouvir isso quando precisou se internada por um abcesso na garganta. Júlia, então, já tinha perdido 20 quilos por conta da prática esportiva e das mudanças na alimentação. Mas o médico não quis nem saber — disse que o crossfit não daria certo e que a solução para ela seria a bariátrica.

Júlia se lembra — e não é uma boa lembrança — que aos 14 anos ouviu uma médica dizendo à sua mãe que ela precisava emagrecer para não morrer cedo. “Já adulta, eu a encontrei em um hospital e, ao passar por mim, essa profissional falou alto para todos ouvirem: ‘Minha Nossa Senhora da Gordura!’. Aquilo foi terrível.”

Hoje ela sabe que existem profissionais de saúde que tratam pessoas com obesidade com a humanidade e a ética necessárias. “Mas ainda falta que muitos enxerguem que nós, os gordos, temos toda uma vida — e uma saúde — que envolve muito mais do que o peso”, opina, propondo a todos os que atuam nessa área uma excelente reflexão.

@foto de arquivo pessoal

veja também

assine nossa newsletter

    nome

    e-mail

    Você aceita as diretrizes desta newsletter

    x

    Aviso de Privacidade - Utilizamos cookies para melhorar a sua navegação e garantir a melhor experiência em nosso site em nosso site. Ao continuar navegando ou ao clicar no botão “ACEITO”, consideramos que você está de acordo com a nossa Política de Privacidade.

    ACEITO